Circula nas redes sociais uma publicação em que se denuncia um suposto “louvor a Lúcifer filmado no Vaticano”. No centro da publicação está um vídeo com perto de dois minutos de duração que retrataria uma suposta adoração demoníaca na basílica de São Pedro, no Vaticano, na presença do Papa Francisco e de inúmeros cardeais, bispos e fiéis católicos.

O vídeo começa com uma fotografia que mostra, supostamente, o Papa Francisco a apertar a mão a um presumível demónio ou líder satânico. Depois, o vídeo mostra um diácono a entoar um cântico a partir de um púlpito na basílica de São Pedro. O narrador do vídeo introduz: “Isto foi filmado no Vaticano e deixou o mundo todo assustado. Prestem atenção na letra desta canção.”

É possível ouvir o diácono a entoar o seguinte cântico, em latim:

Flammas eius lucifer matutinus inveniat:
Ille, inquam, lucifer, qui nescit occasum:
Christus Filius tuus,
qui, regressus ab inferis, humano generi serenus illuxit,
et vivit et regnat in sæcula sæculorum.

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Durante o cântico, vão surgindo no vídeo legendas, tanto em latim como em português, sempre com a palavra “lucifer” assinalada a vermelho. As legendas em português apresentam uma suposta — e errada — tradução daquele cântico latino:

Lúcifer flamejante encontra a Humanidade.
Eu digo: Oh Lúcifer que nunca será derrotado.
Cristo é seu filho, que voltou do inferno e derramou a sua luz pacífica.
E está vivo e reina no mundo sem fim.

De seguida, o narrador questiona-se: “Porque eles estão louvando a Lúcifer às claras, com tudo sendo filmado e transmitido ao mundo em tempo real? Será que estamos equivocados ou, de facto, há uma conexão do Vaticano com as forças do mal?” A seguir, o narrador faz o mais parecido com uma aproximação à verdade: “Muitos dizem que ele se refere a Jesus Cristo como Lúcifer, já que lucifer, palavra em latim, significa estrela da manhã e de facto Cristo é a estrela da manhã.”

Contudo, o narrador rejeita esta tese, alegando que é dito no cântico que Cristo é o filho de Lúcifer.

Várias versões desta publicação incluem o mesmo vídeo, mas com legendas variadas. Algumas acusam os católicos de “celebrar e glorificar diretamente o diabo”, de chamar “filho do diabo” a Jesus, de estarem “delirantes”. Outras vão mesmo mais longe para alinhar em teorias da conspiração segundo as quais estas orações ao demónio estão ligadas à influência maçónica na Igreja Católica.

Mas nada disto é verdade. Afinal, o que está em causa?

Vamos por partes. Começando pelo início: a fotografia que, supostamente, mostraria o Papa Francisco a cumprimentar um alegado demónio é falsa. A falsidade dessa fotografia já foi apontada anteriormente. Trata-se de uma das muitas imagens produzidas com recurso a uma ferramenta de Inteligência Artificial e que mostram o Papa Francisco à conversa com variados demónios e diferentes versões de Satanás.

E quanto às referências a “Lúcifer” no cântico entoado pelo diácono?

As imagens incluídas no vídeo foram retiradas da transmissão da Vigília Pascal realizada na basílica de São Pedro no Sábado Santo de 2013 — a 30 de março daquele ano. E correspondem, mais concretamente, ao momento em que, como acontece habitualmente, um diácono entoa o “Precónio Pascal”, um antigo hino cristão que é usado desde os primeiros séculos na mais solene celebração cristã, que assinala a ressurreição de Jesus Cristo.

Apesar de terem passado já dez anos, a transmissão original daquela celebração está ainda disponível no YouTube do Vaticano. Pode recuperar o momento concreto incluído no vídeo da publicação a partir dos 31 minutos desta transmissão:

O missal original dessa celebração também se encontra ainda disponível na página do Vaticano na internet. Basta ir até à página 15 desse missal para encontrar o cântico em questão — justamente aquele que é cantado no curto vídeo que está a circular nas redes sociais, com as duas ocorrências da palavra latina “lucifer“. Contudo, a tradução que é feita pelos autores do vídeo é manifestamente errada. A tradução correta para o português, que é a que é usada nas celebrações da Vigília Pascal em Portugal, é a seguinte:

Que ele brilhe ainda quando se levantar o astro da manhã
Aquele astro que não tem ocaso:
Jesus Cristo Vosso Filho, que, ressuscitando de entre os mortos, iluminou o género humano com a sua luz e a sua paz
E vive glorioso pelos séculos dos séculos.

Ou seja, ao contrário da ficção que surge no vídeo que tem vindo a circular, a palavra latina lucifer traduz-se por “astro”, “estrela” ou algo como “o portador da luz” — mas não como “Lúcifer”, o suposto nome do demónio. Efetivamente, o cântico do precónio pascal, com aquele verso, tem vindo a ser usado na Igreja há vários séculos, e sempre com a mesma intenção: a de classificar Jesus Cristo como “o astro da manhã”, o “astro que não tem ocaso”, que é o filho de Deus (o cântico dirige-se a Deus).

De onde surge, então, a associação com o demónio?

Na mitologia clássica, Lúcifer era o nome da estrela da manhã — uma figura associada ao planeta Vénus, por ser bem visível o seu brilho antes do nascer do Sol — e era representado por uma figura masculina com uma tocha, como explica a Enciclopédia Britannica.

De acordo com a Enciclopédia Católica Popular, elaborada pelo bispo Manuel Franco Falcão, esta referência à figura mitológica foi usada no Antigo Testamento para designar justamente a estrela da manhã. No livro do profeta Isaías, num relato sobre o regresso dos judeus exilados na Babilónia, é feita uma sátira contra o rei da Babilónia. O profeta acusa o rei de acreditar que subiria aos céus “acima das estrelas mais altas” e de ter caído dos “céus, astro brilhante, filho da aurora”. “Como foste lançado por terra, tu que dominavas sobre os povos”, lê-se no livro. Mais tarde, no evangelho segundo São Lucas, é atribuída a Jesus Cristo a expressão: “Via Satanás como um relâmpago a cair do céu.”

O título “estrela da manhã” foi, esse, reservado a Jesus Cristo. Contudo, a leitura da profecia de Isaías (o rei da Babilónia a considerar-se, no seu orgulho, acima das estrelas mais altas) à luz daquela frase do evangelho de São Lucas sobre a queda de Satanás dos céus “levou os Padres da Igreja a identificar Lúcifer como o chefe dos demónios, apropriação esta que perdura no uso vulgar”, refere ainda a Enciclopédia Católica Popular. A palavra latina “lucifer“, porém, continua a designar o “astro da manhã” — e é nesse sentido que sempre foi e continua a ser usada no contexto do precónio pascal.

Conclusão

Trata-se de uma manipulação flagrante. As legendas colocadas no vídeo não correspondem ao conteúdo do que está a ser dito em latim pelo diácono: a palavra latina lucifer significa “astro da manhã” e é um título atribuído a Jesus Cristo. Ao longo da história, a tradição levou a que o nome “Lúcifer” fosse considerado o nome do demónio antes da sua queda, devido à interpretação feita da profecia de Isaías à luz do evangelho segundo São Lucas, como se explica neste artigo. Portanto, não há qualquer “louvor a Lúcifer” no vídeo.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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