O que está em causa
Não é a primeira vez que Assunção Cristas usa o exemplo do Hospital de Braga para criticar a “embirração ideológica” do Governo — e dos seus parceiros de esquerda — com as Parcerias Público-Privadas (PPP). Durante 10 anos, aquele hospital funcionou em regime de PPP, num contrato com a José de Mello Saúde. A parceria chegou ao fim em agosto deste ano, com o Governo e a empresa gestora em desacordo, apesar de ter sido considerado o melhor hospital do país.
Ainda em janeiro, a líder do CDS usava uma frase muito semelhante à usada na noite desta terça-feira. Numa espécie de pré-campanha para as eleições europeias — que seriam apenas em maio —, Cristas dizia que o contrato daquela PPP terminava apenas “por opção deste Governo e por pura embirração ideológica”, apesar de ter “poupado muito dinheiro ao Estado, na medida em que este hospital já se pagou a si próprio duas vezes”.
Na altura, a líder centrista falava apenas em “muito dinheiro”. Agora, num comício de campanha para as legislativas, usou um número: “80 milhões de euros” — o valor que, segundo Assunção Cristas, o contrato da PPP de Braga permitiu poupar “aos bolsos dos portugueses”.
A garantia tem três problemas: a presidente do CDS-PP não cita a fonte daquela informação; não diz se está a referir-se ao valor de poupança anual ou à poupança total dos 10 anos de contrato (o que, naturalmente, faz toda a diferença); e os vários estudos feitos, ao longo dos anos, à execução da PPP apontam para dados completamente diferentes — entre os 20 milhões e os 400 milhões de euros. O CDS explicou, entretanto, ao Observador, que Assunção Cristas foi buscar o número a declarações de uma representante da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos — que também não clarificou de que período estava a falar.
Quais são os factos?
É possível recorrer a, pelo menos, quatro avaliações sobre os resultados da PPP do Hospital Braga, de quatro entidades diferentes. Apesar de não chegarem a valores de poupança exatamente iguais e de não olharem exatamente para os mesmos períodos de tempo, as quatro estimativas de poupança rondam os mesmo valores anuais, em média: por volta dos 30 milhões de euros.
Relatório de avaliação do Banco BPI (2011 a 2013): 33 milhões de euros/ano
O “Relatório de Avaliação do Value for Money da PPP do Hospital de Braga”, preparado pelo BPI (responsável pela assessoria financeira da gestão do contrato), foi pedido pela ARS Norte e é citado num estudo da Entidade Reguladora da Saúde, de 2016. Neste caso, a análise é feita a um período de três anos — entre 2011 e 2013 — e o balanço é considerado positivo: face a outros hospitais do grupo de referência, o modelo de gestão público-privado em Braga permitiu “um desconto médio (…) acima dos 20% e uma poupança naqueles 3 anos de cerca de 98 milhões de euros” — uma média de 33 milhões de euros por ano.
Estudo da Católica Lisbon School of Business & Economics (2012 a 2015): 20 a 33 milhões de euros/ano
Encomendado pela José de Mello Saúde, o estudo da Universidade Católica, tornado público em 2016, ainda a PPP estava em vigor, olha para um período de quatro anos, entre 2012 e 2015. E conclui que os “ganhos de eficiência obtidos pela gestão privada” permitiram poupar entre 100 milhões e 130 milhões de euros — em média, entre 20 milhões a 33 milhões de euros por ano.
Relatório da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (2011 a 2015): 40 milhões de euros/ano
A Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos (UTAP), uma entidade tutelada pelo Ministério das Finanças, faz umas contas um bocadinho acima. Num relatório que analisou um período de cinco anos, entre 2011 e 2015, a UTAP conclui que que o Estado poupou em Braga 199,1 milhões de euros — uma média de 40 milhões de euros por ano.
Balanço do Grupo Mello (2009 a 2019): 30 a 40 milhões de euros/ano
A PPP de Braga começou em setembro de 2009 e terminou a 31 de agosto deste ano. Ainda em junho, numa sessão comemorativa dos 10 anos do Hospital de Braga sob a gestão da José de Mello Saúde, o Grupo Mello já fazia um balanço. Entre 2009 e 2019, a empresa gestora diz que o Estado poupou 300 a 400 milhões de euros com a parceria — em média, 30 a 40 milhões de euros por ano.
Ao Observador, o CDS-PP explicou, entretanto, que Assunção Cristas baseou-se em declarações de Maria Zagalo, coordenadora da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos do Ministério das Finanças. Ouvida pelo grupo de trabalho de avaliação das PPP, no parlamento, em maio deste ano, Maria Zagalo referiu o caso de Braga falando em poupanças “na ordem dos 80 milhões de euros para o período considerado”, mas sem clarificar que período foi esse. Ou seja, Cristas baseou-se numa estimativa que a própria autora não detalhou, correndo o risco de fazer parecer que a poupança de 80 milhões de euros era anual — muito acima da realidade — ou total, para os 10 anos — muito abaixo da conseguida. Na verdade, olhando para as estimativas da própria UTAP, já citadas acima, Maria Zagalo estaria, provavelmente, a falar de um período de dois anos.
A explicação do CDS-PP tem ainda outra curiosidade: os centristas baseiam-se num artigo do jornal Público que põe as poupanças trazidas pelas PPP em perspetiva, lembrando que os contratos são muito difíceis de avaliar e que, no final de contas, não há uma conclusão clara sobre se as PPP são ou não mais eficientes — e esse é exatamente o argumento contrário ao de Assunção Cristas, que usava o exemplo do Hospital de Braga precisamente para destacar os benefícios das parcerias público-privadas na saúde.
Conclusão
Assunção Cristas não cita a fonte nem clarifica a que período se referia. Pela explicação que se seguiu, percebe-se que usou um dado que a própria fonte não clarificou. Falar em 80 milhões de euros — referentes a dois anos de contrato, mas sem o dizer — pode, por isso, criar a ideia, errada, de que se trata da poupança anual (que andará entre os 30 e os 40 milhões). Se o objetivo era falar de toda a poupança, num contrato que durou 10 anos, o valor continua a estar errado (serão entre 300 e 400 milhões). Assim, a declaração é esticada: poupa, de facto, mas não aquele valor.
[Artigo corrigido às 17h56. Na versão anterior, a declaração era considerada Enganadora. Pelo facto de o valor errado não contrariar, ainda assim, o argumento base de Assunção Cristas — o de que as PPP poupam dinheiro ao Estado — corrigimos para Esticado.]