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Uma história de direitos conquistados e gostos adaptados |
No passado dia 2 de Maio a União (a forma norte-americana de unidade sindical) que representa mais de onze mil guionistas e outros escritores para os principais meios de entretenimento iniciou uma greve. A última greve em Hollywood tinha acontecido em 2007 e durou um ano inteiro, mas isso foi antes da era do streaming. |
A música também já teve a sua greve sindicalizada, entre 1942 e 1944 e a verdade é que não só fez efeito, como mudou para sempre o gosto musical. |
Em Agosto de 1941 estalou o verniz, após crescentes tensões, entre a União dos músicos, chefiada pelo sindicalista James Petrillo, e a indústria discográfica. O diferendo prendia-se com a distribuição da riqueza gerada pelas vendas de discos, riqueza essa que era — no entender de Petrillo, e justamente — em parte devida pela indústria aos criadores do conteúdo. Uma discussão que, de resto, se mantém tão actual como nunca, para a qual basta lembrar o longo rol de polémicas que vão periodicamente envolvendo o Spotify, que faz com que de vez em quando artistas — grandes ou não tão grandes — retirem o seu conteúdo desta plataforma de streaming. |
Em 1941 as leis de copyright eram ainda rudimentares, deixando todo o campo dos direitos conexos e de royalties à descrição das empresas discográficas que detinham o material que fazia circular a indústria. Os artistas eram pagos no acto da gravação, mediante os contratos que assinavam, e isso era tudo o que tinham direito a lucrar, quer o seu disco vendesse muito ou pouco. |
Em 1940 Petrillo fora eleito presidente da União, já com a promessa de fazer frente a esta situação. Assim, em Agosto de 1941, o sindicalista declara que a União iria começar uma greve, dando ordem de suspensão a todas e quaisquer gravações em estúdio, numa tentativa de secar o mercado e obrigar as grandes empresas a vergar-se ao interesse dos artistas, caso não fosse possível chegar a acordo. |
No início, a greve não foi levada a sério por ninguém. Era ridicularizada pelas editoras discográficas, criticada na imprensa e, além disso, os EUA acabavam de entrar em guerra, o que secundarizava quaisquer reivindicações por parte dos músicos. Ninguém acreditava que a vontade de uma unidade sindical pudesse ter mais força do que alguns dólares atirados como forma de compensar e acalmar as águas. E foi assim que, em Julho de 1942, não tendo sido possível chegar a qualquer consenso negocial, se tornou evidente que a greve ia acontecer. |
Isto significava que todos os músicos profissionais registados na União (o que perfazia a quase totalidade dos músicos profissionais de então — o único agrupamento de excepção notável era a Orquestra Sinfónica de Boston, que no entanto aderiu à greve em 1942) não iriam realizar gravações discográficas enquanto não fosse levantada a greve. Assim, verificou-se um surto exponencial de gravações, a maior parte feitas à pressa, no intuito de encher a despensa de etiquetas como a Columbia, Capitol Records, Decca ou RCA Victor por alguns meses, até quando a greve terminasse. Só que, surpresa geral, a greve durou e durou e durou… |
Passados esses primeiros meses, os catálogos de novidades das marcas discográficas começaram a escassear, o que as obrigou a revisitar o seu próprio arquivo, desenterrando gravações tão antigas que algumas remontavam aos anos vinte e já não diziam muito ao gosto do seu tempo. A greve mantinha-se e, finalmente, começou a verificar-se um nivelamento deste combate tão desigual. Porque, de resto, a greve não impedia que os músicos fizessem actuações ao vivo, o que lhes permitia continuar a viver do seu trabalho e manter viva a sua fama. Já as casas discográficas, essas precisavam de discos e, sobretudo, de novidades, para sobreviverem. |
Nas semanas antes de a greve começar, o que aconteceu em Agosto de 1942, o surto apressado de gravações levou a novos êxitos por parte de artistas como Count Basie, Judy Garland, Bing Crosby, Woody Herman, Duke Ellington ou Glenn Miller, este que poucas semanas depois viria a deixar a carreira civil e se alistava no exército, e cuja história contei neste episódio do podcast Encontro com a Beleza. |
A verdade é que a greve teve efeito. Por um lado, foi a ocasião de se reavaliarem algumas excelentes gravações anteriores a 1942 que tinham passado despercebidas ou caído no esquecimento. Um exemplo disso foi As time goes by por Rudy Vallée, que se tornou um hit graças ao filme Casablanca, de 1942, do qual esta música se tornou a lendária banda sonora. |
No entanto, o mais curioso neste processo acabou por ser a forma como a indústria reagiu, se adaptou e, com isso, mudou o gosto musical de então, o que veio a ser um cruel revés para os próprios músicos em greve. |
À medida que a greve se esticava, ultrapassando a duração dos dois anos, tornou-se evidente que eram precisas alternativas. Até porque Petrillo estava indefectível, mesmo após receber um telegrama do presidente Roosevelt em 1944, no qual este lhe recomendava que terminasse a greve a bem dos interesses da nação beligerante, assumindo as suas perdas como ganhos colectivos para o país. Em vão. Não havia volta a dar, sem acordo a greve continuaria o tempo que fosse preciso. |
Neste sentido, a primeira preocupação da indústria discográfica, por forma a contornar a greve, foi encontrar novos músicos, de preferência emergentes e que não estivessem associados à União. No entanto, havia um problema: os cantores precisavam de bandas que os acompanhassem. Neste tempo a prática em voga eram precisamente serem as bandas (leia-se big bands) a brilhar e a dar o nome pelos discos. São ainda os anos de bandas célebres de bandleaders como Paul Whiteman, Count Basie, Duke Ellington, Benny Goodman, Glenn Miller, entre tantos outros. Estas bandas estavam todas envolvidas na greve. Assim, a indústria recorreu a um menor número de músicos, remetendo-os para o anonimato e colocando maior ênfase nos cantores. É assim que o jovem Frank Sinatra nasce para a carreira. Ele que em 1940 se juntara como vocalista e corista à famosa banda de swing de Tommy Dorsey e, quando a greve começa em 1942, era um jovem de 28 anos desconhecido, que mal tinha direito a ver o seu nome na contracapa dos discos aos quais emprestava a voz, quando a greve termina é uma celebridade de pleno direito. A razão? Tornou-se independente da sua banda e começou a gravar canções em nome próprio. E não é que o rapaz até tinha boa voz…? |
Ao passar a ouvir cantores em vez de bandas, o gosto do público adaptou-se a este novo jeito de fazer música, criando-se também um novo star system em torno destes futuros grandes heróis da música. |
A ascensão destes novos cantores foi tão meteórica que há registo de um concerto que conta bem a história do que se passou: Poucos meses depois do começo da greve, em Dezembro de 1942, Benny Goodman e a sua banda apresentam-se em concerto no famoso Paramount Theater de Nova Iorque, onde são cabeças de cartaz. Nesse concerto, Frank Sinatra seria a terceira actuação da noite mas para Benny Goodman esse era um nome desconhecido. Tão desconhecido que, ao anunciar Sinatra e ver o êxtase do público, Goodman exclamou “what the hell was that!?”, em profunda surpresa. Quando Sinatra subiu ao palco, o público nunca parou de gritar. O sucesso de Sinatra estava consumado e a greve ainda agora tinha começado. |
Moral da história: a greve termina no final de 1944, com um entendimento entre ambas as partes e a celebração de contratos para royalties doravante. Mas o gosto musical mudara nesses dois anos e as big bands e bandas de swing, as mesmas que tinham estado em greve, acabaram por sair progressivamente de cena, para dar lugar a novas vozes que se haviam de suceder: Frank Sinatra nos anos 1940, Elvis Presley nos anos 1950, e o resto é a história que todos conhecemos. Ironia do destino, não é? Aqueles que levantaram a greve perderam o lugar. No entanto, e apesar das suas conquistas, os direitos de autor continuam a ser um tema sensível, numa era em que o streaming substituiu em grande medida as vendas de discos. Por essa razão, a questão continua actual e não me parece descabido que aconteça, não uma greve, mas um movimento de boicote mais generalizado mais cedo ou mais tarde. |
[Na fotografia, o jovem Frank Sinatra toma de assalto o Paramount Theater em Dezembro de 1942 e mostra de que forma the times have changed] |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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