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Os duelos não têm de ser coisa de sangue. Até porque esses já não são legais há algum tempo. Que tal um duelo musical? |
A cultura dos duelos, hoje em dia, vive na memória como uma das facetas mais picadas dos tempos de antigamente. Desde a antiguidade, o fenómeno subsistiu sob diversas formas e pelos mais variados motivos: para lavar o bom nome depois de uma contenda política, para repor a honra ofendida após uma ofensa recebida, para resolver despiques amorosos, por tudo e mais alguma coisa. |
Se recuarmos ao começo do século XX, encontramos o procedimento do duelo de honra perfeitamente enraizado na conduta portuguesa, como demonstra Afonso Costa, ilustre político e ministro da primeira república, exemplar praticante de duelos. A 14 de Julho de 1908, pouco após o regicídio e enquanto era deputado republicano no ainda estado monárquico, ei-lo a resolver à espada uma contenda política com José Capelo Penha Frazão, primeiro Conde de Penha Garcia, então nada menos do que Ministro da Fazenda (ou seja, das Finanças) em funções. Poucos anos depois, Alexandre de Albuquerque, deputado do Partido Progressista, irá conhecer o sabor da espada do mesmo enérgico deputado republicano. Passados cinco meses, vinha aí a república e com ela a ascensão meteórica de Afonso Costa. |
Os duelos de honra, como eram o caso destes, atravessaram os tempos e encontramo-los nas histórias, nos livros, nos filmes, nas pinturas, e até na música. Não numa descrição musical de um duelo (que também as há — penso em Monteverdi e o seu Combattimento di Tancredi e Clorinda), mas sim em duelos entre músicos. E não falo de músicos de espada em riste de frente um para o outro (embora também haja casos como o de Joseph Boulogne, Chevalier de Saint-Georges, ilustre virtuoso do violino e esgrimista, contemporâneo de Mozart). |
Os duelos que aqui trago são contendas em que a bravura é demonstrada através do instrumento musical, defrontando-se dois oponentes que pretendem provar que cada qual merece ser coroado de glória no reino das musas. |
Recuemos a 1781. Em Maio desse ano, o jovem Mozart, então com 25 anos, deixava a sua cidade natal de Salzburgo e estabelecia-se na capital do Império, Viena, onde rapidamente alcançou a fama de ser o mais talentoso pianista, improvisador e compositor das redondezas, reputação que Mozart muito prezava e se esforçava por manter viva. Em Dezembro desse ano, está de passagem pela cidade o pianista italiano Muzio Clementi, natural de Roma e cinco anos mais velho do que Mozart, que realiza uma digressão pelas principais cidades europeias. |
Ao saber da presença deste na cidade, o Imperador José II teve a ideia de convidar os dois para uma apresentação conjunta sob a forma de um duelo, embora melhor fosse aqui chamar-lhe simplesmente picardia. Ambos aceitaram e o acontecimento começou, ou não estivéssemos em pleno século XVIII, com elogios e galanteios mútuos entre os jovens músicos, que versaram sobre temas desde a indumentária à qualidade musical e a fama pela qual eram precedidos. |
O Imperador actuou como mestre de cerimónias e decidiu que Clementi tocasse primeiro, seguindo-se-lhe Mozart. O serão consistiu em ambos tocarem música sua, improvisarem e lerem à primeira vista alguma música de outros compositores, muito apreciados pelos membros da corte. |
Nessa noite, véspera de Natal, estava presente o futuro Imperador Leopoldo I, irmão mais novo de José II. A esposa deste, então Grã-Duquesa da Toscânia, Maria Luísa, era natural de Nápoles e em muito preferia o gosto italiano ao estilo alemão (é dela a famosa frase “isto é lixo alemão”, após escuta de uma ópera de Mozart dez anos mais tarde), que então dividia a Europa em duas facções musicais bem aguerridas. Tanto assim era que tinha feito uma aposta privada com o seu cunhado, cada qual apoiando o músico seu conterrâneo. |
Mas, e uma vez mais, ou não estivéssemos em pleno século XVIII, o embate foi proclamado empatado e o prize money de 100 ducados divido a meio entre ambos. No fim de contas, a ideia não era arrasar a carreira de nenhum dos dois jovens, mas pelo contrário dar-lhes alento e proporcionar uma noite agradável a todos os convivas. No entanto, diz-se que o imperador obteve da cunhada a parte que lhe era devida, tendo havido acordo tácito em como Mozart era outra loiça comparativamente a Clementi. De resto, a história encarregou-se de guardar um lugar para cada qual: Mozart é Mozart e Clementi é autor de vários manuais de aprendizagem de piano e colectâneas de partituras que ainda hoje são usadas por todo o mundo para aprender piano, para além de ter sido um ilustre construtor de pianofortes, o avô do piano moderno, que por esses anos dava os primeiros passos no mundo. |
Com o avançar dos anos e com o perder do charme galante e da sensibilidade iluminista, estes desafios foram-se de facto transformando em duelos. Quando Beethoven defrontou o virtuoso Daniel Seibelt em 1800, na mesma cidade de Viena, o evento foi já bem diferente. Continuava a acontecer em ambiente palaciano, sendo ambos apadrinhados por eminentes príncipes, e consistia num concurso de improvisação sobre temas sugeridos pelo público. Só que Beethoven esmagou Seibelt de uma forma que pode ser, sob todos os pontos de vista, considerada pouco elegante para com o seu opositor. Bastou o mestre sentar-se ao piano, após a primeira improvisação de Steibelt, para que este se levantasse e saísse da sala vexado. O motivo? Beethoven não só tocava muito melhor, como estava a imitar o estilo de Steibelt, reduzindo-o ao ridículo. Ao sair, Steibelt proclamou que nunca mais voltaria a Viena enquanto Beethoven lá vivesse. Dito e feito: Beethoven viveu nesta cidade até ao fim dos seus dias e Steibelt manteve a promessa, falecendo quatro anos antes do seu némesis. |
O tempo avança e eis que encontramos outro duelo, este ainda mais pungente. Desta vez, defrontam-se os titãs do piano Sigismund Thalberg e Franz Liszt. Um duelo musical mais sangrento, no sentido em que arrebatou mais paixões. Corria o ano de 1837 e a cidade era Paris. O ambiente era de salão, ainda de elite mas não exclusivamente aristocrático. O desafio foi proposto por Thalberg a Liszt, naquilo que seria o embate do século. Já antes de se defrontarem, ambos trocavam galhardetes através do “diz-que-disse” da cultura de salão destes anos. Liszt desprezava Thalberg, que por sua vez desprezava Liszt. E ambos tinham as suas bancadas de indefectíveis adeptos. |
O embate aconteceu na noite de 31 de Março e o local foi o palácio da fascinante condessa Cristina Belgiojoso, herdeira mais rica de Itália do seu tempo, ilustre mecenas das artes, escritora, figura de proa do Risorgimento e, ou não estivéssemos em pleno período romântico, amante de figuras ilustres como Henrich Heine, Marquês de La Fayette ou o próprio Liszt. |
E coube à anfitriã o remate no fim de uma noite que, para todos, era evidente que se traduzia numa retumbante vitória de Franz Liszt. Terá dito a Condessa que “Thalberg é o maior entre os pianistas, mas Liszt é único entre todos”. O que queria isto dizer? No fundo, tratou-se de um elogio aos dois, numa tentativa de deixar ambos bem, ao mesmo tempo reconhecendo que um é quiçá melhor do que o outro. |
Como eram espirituosas estas mentes de antigamente! |
Se ficou com curiosidade sobre como seria assistir a um duelo entre pianistas nestes tempos, tem bom remédio: no Festival de Sintra, já na noite do próximo dia 20 de Junho, terá lugar um inaudito duelo entre Raúl da Costa e Vasco Dantas, a decorrer no lindíssimo e muito apropriado Salão Nobre do Palácio de Seteais. O evento é precedido de uma palestra por Edward Ayres d’Abreu, musicólogo e director do Museu Nacional da Música. Os lugares são muito restritos (à data em que escrevo ainda há bilhetes, mas é provável que quando este texto vir a luz do dia já estejam esgotados) e podem ser comprados neste link. De resto, a programação completa do Festival de Sintra pode ser consultada aqui. |
Eu lá estarei, e logo na figura de mestre de cerimónias. E só me resta dizer: que ganhe o melhor! |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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