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Aconteceu no início do mês de Maio: Yannick Nézet-Seguin dirigia um concerto sinfónico com a sua orquestra de Filadélfia quando um telefone tocou na plateia. O maestro interrompeu o concerto e esperou que o toque fosse interrompido. Passado pouco tempo, outro telefone voltou a tocar. O maestro mais uma vez parou a música e disse ao público a frase que rapidamente viralizou: “Can we live without the phone for just one damn hour?”. |
A pergunta era retórica, naturalmente. Não tem uma só resposta possível e há cada vez mais mentes a abordar o tema por todos os ângulos: os benefícios de desligar, as penalizações para chefes que contactam empregados fora do horário de expediente, a importância que é dada às ocupações alternativas, estudos que provam que viver colados ao ecrã é péssimo de mil e uma maneiras diferentes, etc. O livro que mais vezes tenho oferecido a amigos é, precisamente, O Silêncio na era do Ruído, de Erling Kagge, explorador nórdico que desenvolveu uma relação umbilical com o silêncio. Ofereço-o porque o considero iluminador e relevador, sendo que eu próprio vejo na nossa relação difícil com o silêncio um sinal alarmante de mal-estar colectivo. Algo está mal se, de facto, não conseguimos estar calados e conviver com o silêncio. |
A frase de Nézet-Seguin tornou-se viral de forma instantânea. As redes sociais daqueles que testemunharam o acontecimento, e que provavelmente tinham o telefone em silêncio no bolso, foram a plataforma a partir da qual o acontecimento virou notícia. E, depois de ser notícia, virou slogan. Passados poucos dias, a revista VAN desafiou a Orquestra de Filadélfia no Twitter: se vocês não pegam nesta frase para fazer merch (ou seja: parafernália), fazemo-lo nós. A Orquestra não tardou e eis que, nas suas redes sociais, anunciava pouco depois as capas para iPhone, os sacos de pano e as camisolas com a famosa frase estampada. É claro que também existe em formato hashtag e quando, uma semana depois, o maestro voltou a subir ao palco do Verizon Hall, Nézet-Seguin carregava consigo uma aura de defensor do silêncio e do respeito, servindo-se do seu bom-humor característico, ou não tivesse o próprio maestro dado um empurrão à campanha. |
Tudo estava a correr bem neste concerto onde a segunda peça no programa era a mais esperada, a Sinfonia Fantástica de Berlioz. Quarenta e cinco minutos de adrenalina, lirismo e loucura musical, fruto de uma composição com quase duzentos anos que descreve em sons uma trip de ópio de um pobre artista apaixonado que quase morreu da dose que tomou. Ainda não tinha passado um minuto desde que começara a Sinfonia. Eis senão quando — adivinharam — um telefone voltou a tocar. A sala pasmou e reagiu com aquele burburinho de quem diz “não acredito que isto voltou a acontecer! Vai saltar a tampa ao maestro!” |
Dito e feito, Nézet-Seguin interrompeu a orquestra e virou-se para o público, a quem disse, friamente, que desta vez ia simplesmente pedir que desligassem os telefones naquele instante, evitando a palavra damn. E rematou dizendo que “o mundo pode esperar”, antes de se virar de novo para a orquestra e recomeçar a sinfonia do início. |
Há coisas em que a música clássica é mesmo diferente das outras músicas. Se calhar, a maior diferença de todas é, precisamente, a sua necessidade quase permanente de silêncio. |
Trata-se de música que é tocada de forma acústica, geralmente em salas grandes e com muita gente presente. Um recital para piano pode acontecer numa sala com dois mil lugares. E, nesse recital, certamente haverá passagens de enorme delicadeza, daquelas de suster a respiração. Para que não percam a sua magia, é preciso que duas mil pessoas se portem bem, de preferência do início ao fim. Daí a rigidez nos aplausos. Daí o desconforto da experiência para muitas pessoas, que não gostam de sentir que a sua própria respiração incomoda as outras pessoas. E daí que, a partir de 2014 e 2015, no seguimento de muitos toques de telefone por todo o mundo, algumas salas de concerto tenham adoptado os chamados Tweet seats. Os lugares para escrever tweets, que é como quem diz, onde é permitido ter o telefone na mão (sempre em silêncio, é claro) e tirar fotografias, passar os olhos pelo Instagram ou até fazer uma story. Estes lugares foram anunciados como se tivesse sido inventada a roda, mas, até ver, não resolveram o problema pior de todos, que são aquelas intromissões no silêncio que podem estragar a experiência a toda a gente, músicos e ouvintes. |
Pessoalmente, vivi de perto o drama dos telefones quando fui assistente de sala na Fundação Calouste Gulbenkian, o trabalho de sonho para o então jovem de 19 anos que eu era, ávido de ir a concertos e absorver a temporada de fio a pavio. Perdi a conta às admoestações devidas a telefones, tal como outros comportamentos inapropriados que tínhamos de arranjar forma de interromper, onde o mais clássico de todos era o desembrulhar ruidoso e indolente de rebuçados de mentol, ficando depois o culpado desse enervante ruído a remexer o plástico nos dedos, como se tivesse prazer em torturar os outros espectadores e causando silvos de “shh” vindos de toda a sala. Certa vez, tive mesmo de caminhar de gatas pela coxia para arrancar um desses embrulhos da mão de um senhor que, distraído e provavelmente mouco, estava nem aí para o barulho que estava a fazer. |
Passados vários anos, a mesma Fundação Calouste Gulbenkian tentou uma abordagem nova: um roll-up à entrada do Grande Auditório onde se recomendava às pessoas que respeitassem o silêncio, nomeadamente evitando tossir. |
O roll-up deu alguma celeuma e acabou por desaparecer. E é inevitável que nos perguntemos: é preciso chegar a tamanhos extremos? Roll-ups que intimam a não tossir, capas de iPhone que satirizam quem deixa o telefone ligado durante uma sinfonia e um ambiente no geral manifestamente hostil ao ruído? |
Penso nisto muitas vezes e lembro-me das casas de fado, onde é famosa a ordem “silêncio, que se vai cantar o fado”. No entanto, este silêncio é pedido num contexto em que as pessoas estão à mesa, muitas vezes a meio de uma refeição. Não se trata apenas de silenciar o burburinho das conversas, mas também o bater de talheres nos pratos e todo o ruído normal de uma refeição. De resto, o à-vontade é claro, ao contrário da sala de concertos de música clássica. Já assisti a muito fado sentado de viés na cadeira onde estava a jantar, de copo na mão e abrindo o telefone as vezes que me apeteceu. Ouço muito menos tosses no fado do que na música clássica e tenho a certeza de que é por motivos de conforto, escondidos nas profundezas do nosso subconsciente. |
Na sala de concertos, as pessoas estão sob a tensão da imobilidade e do silêncio, partilhados a curta distância com desconhecidos. No fado há uma proximidade e naturalidade na forma de estar que muito atenua a rigidez do silêncio, que de resto se torna uma coisa mágica, onde o contributo que cada ouvinte pode dar é, precisamente, estar calado e atento. |
O mesmo fenómeno acontece noutras músicas que são tocadas em formato acústico e sou levado a pensar no tango ou no flamenco, dois géneros que devem ser degustados em silêncio, embora ambos convidem aqui e ali às interjeições por parte do público, que fazem parte da experiência e dão alento aos artistas. De resto, nestas músicas há dança, o que, por si só, é um gerador de ruído natural que a música deve ser capaz de suportar. |
Afinal, bem vistas as coisas, o fado pode mesmo ser um bom tubo de ensaio para procurar formas de estar diferentes, em que não é preciso que um maestro, por muito bonacheirão e bem-intencionado que seja, tenha de interromper um concerto e dar uma lição de moral a mil e quinhentos adultos por causa dos telefones, mesmo havendo razão para isso. |
E, se calhar, em vez dos entediantes anúncios de sala automatizados, bastaria alguém aparecer no palco antes de um concerto de música clássica começar e dizer ao público: “Silêncio, que se vai tocar Mozart”. Um dia ainda hei de experimentar. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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