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Yannick Nézet-Séguin: o maestro que deu nova vida à Met |
A New York Magazine não é, certamente, tão famosa pelas capas quanto a sua rival semanal, a New Yorker. Mas na semana passada registou um êxito nas redes sociais graças à fotografia que expôs na primeira página. Nada de escandaleira, nada de silly season, estejam descansados. A imagem em questão é uma sobreposição de retratos feitos por Pelle Cass a partir de um ponto elevado na esquina entre duas ruas no Meat Packing District a umas dezenas de pessoas que fazem de Nova Iorque uma cidade em que vale a pena viver neste momento. |
Desde 2004 a New York Mag apresenta por esta altura o seu relatório anual sobre as razões pelas quais a Big Apple merece o nosso amor e este ano decidiram fazê-lo à volta das personalidades que tornam a vida na cidade mais interessante. |
A redação da revista desafiou mais de uma centena de pessoas escolhidas a dedo para, durante um dia específico, passarem a pé por aquele lugar. Dessas, houve 72 que responderam ao desafio, surgindo todas numa colagem caótica, uns passando por cima dos outros e aparentemente criando até um aparatoso incidente pedonal onde não falta a presença dos inevitáveis pombos e de um cão que parece alheio a tudo o que se passa à sua volta. |
A ideia de justapor caras famosas sem qualquer ligação entre si numa capa não é nova. Salta imediatamente à memória o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que fez capa com a icónica e colorida montagem que junta os Beatles a figuras que vão de Marilyn Monroe a Karl Marx. |
Dado o grau de popularidade que os Beatles tinham em 1967, ano do lançamento deste disco, é legítimo assumir que qualquer cara que figurasse na desconcertante montagem teria de ser famosa ou então passaria a sê-lo pelo simples facto de estar ali. |
Foi por isso uma surpresa para os aficionados da música clássica que a cara do compositor alemão Karlheinz Stockhausen fizesse ali uma aparição, espreitando entre os actores cómicos W.C. Fields e Lenny Bruce, famosos em meados do século XX mas hoje caídos no esquecimento. |
Como assim, um tipo da música clássica, para mais um vanguardista da ala mais radical e intelectual do pós-guerra, estampado na capa de um disco de música pop? |
Assim mesmo. Porque Stockhausen conseguira, enquanto enfant térrible, notabilizar-se tanto que se tornou relevante o suficiente para ter ali a sua cara estampada. |
E o mesmo aconteceu nesta capa da New York Magazine, que entre retratados como Spike Lee, Linda Evangelista, Emma Straub, Julia Fox ou Alex Katz, inclui o maestro canadiano Yannick Nézet-Séguin. |
E como pode um maestro ser uma das 72 pessoas que estão a dar vida a uma cidade tão inesgotável como Nova Iorque? Eis a questão que hoje me traz aqui. Porque a verdade é que Nézet-Séguin merece inteiramente ser considerado um dos mais atractivos activos humanos da cidade norte-americana. |
O maestro distribui a sua agenda preenchida sobretudo entre as cidades de Filadélfia, onde é director musical da principal orquestra da cidade, Nova Iorque, onde é director musical da Metropolitan Opera (aka “Met”) e Montreal, onde também é director da Orchestre Métropolitain. |
Qualquer destes cargos seria suficiente para lhe preencher a agenda semana após semana, mas o maestro mantém também a posição de maestro honorário da Orquestra Filarmónica de Roterdão e membro honorário da Chamber Orchestra of Europe, além de se apresentar enquanto maestro convidado com as principais orquestras do mundo. |
Não é pois de espantar que o seu ritmo de trabalho seja frenético. Só este mês, o maestro tem 11 datas de concertos e óperas com três orquestras distintas, em que dirige programas diferentes em cada cidade. No sábado passado apresentou-se no Lincoln Center em Nova Iorque para uma récita matiné da ópera As Horas de Kevin Puts, sendo que às 20h00 do mesmo dia já estava em Filadélfia para dirigir um programa sinfónico. Se pensarmos que, além de dirigir concertos, um maestro também tem de se ocupar com os ensaios, fica-se com uma ideia do volume de trabalho a que se dedica Nézet-Séguin. |
Pelo ritmo de vida, parece que estou a descrever um jovem de 25 anos. Já pela quantidade de cargos que ocupa, parece que estou a falar de um músico nonagenário, coberto de insígnias e títulos honoríficos. |
Na verdade Nézet-Séguin ainda nem tem 50 anos, o que na carreira de um maestro significa que está a sair da juventude e a entrar na fase da maturidade plena. |
A sua aparição enquanto director musical da Met é aquilo que aqui mais nos deve interessar. Nézet-Séguin foi a escolha do conselho de administração desta que é a maior organização dedicada às artes performativas em todo o continente norte-americano, após se tornar insustentável a continuidade do maestro James Levine, então já com 75 anos, que em 2018 caíra oficialmente em desgraça no seguimento de uma investigação criminal sobre actos de pedofilia e abuso sexual ocorridos na década de 1980. |
Se é verdade que os rumores sobre os comportamentos abusivos de Levine eram sobejamente conhecidos de todo o meio musical desde há muito tempo, o facto é que só em 2016 é que foi lançada uma investigação formal, tendo o director administrativo da Met, Peter Gelb, mantido Levine no cargo apesar de saber que este era alvo de uma investigação criminal. Quando a bomba finalmente rebentou, as atenções do mundo inteiro recaíram sobre a Met e o seu administrador, que enfrentaram desde logo enormes perdas na filantropia, que é fundamental para o funcionamento desta instituição que angaria mais de 200 milhões de dólares por ano só em doações privadas. |
De um dia para o outro, ninguém queria associar-se a uma instituição que tinha encoberto as atrocidades daquele que fora seu director musical durante trinta anos, de 1976 a 2016, ano em que se reformou e passou a maestro emérito e coordenador de um programa para jovens artistas. |
A escolha recaiu então em Yannick Nézet-Séguin, que já tinha passado pela Met algumas vezes enquanto convidado e cuja persona representa(va) a antítese de Levine: onde o anterior maestro desempenhava um lugar de líder incontestável e tirânico, Nézet-Séguin destaca-se pela sua atenção ao bem-estar dos músicos e às necessidades de actualizar o panorama artístico da Met. |
Homossexual casado e voz activa na agenda dos direitos LGBTQ+, dedicado à causa de compositores sub-representados como Florence Price (a quem dediquei um episódio do Encontro com a Beleza) e reformista do estatuto das orquestras, foi este o maestro que aceitou a incumbência de lavar a cara do mais importante teatro de ópera do mundo, então caído em espalhafatosa desgraça. |
Desde que ocupou o cargo, Nézet-Séguin teve também de enfrentar o desafio da pandemia, quando a Met arriscou fechar portas para sempre devido à redução drástica de receitas. Deve referir-se que a instituição é independente do governo federal norte-americano, sendo totalmente responsável por garantir a sua subsistência financeira, cujo orçamento global ascende a mais de 300 milhões de dólares por temporada. |
Hoje, no fim de 2022, a Met está de boa saúde artística e financeira e expurgou definitivamente o fantasma do encobrimento de James Levine. E se assim é, muito se deve a Nézet-Séguin, que no espaço de quatro anos conseguiu conduzir os desígnios artísticos de uma instituição monumental, transformando-a de novo num dos espaços mais excitantes da cena cultural nova-iorquina, notada até pela imprensa generalista, como é o caso da New York Magazine. |
A transição poderá ter comportado um certo grau de risco mas os resultados estão à vista. Casos como os de Nézet-Séguin inspiram-me na crença de que é sempre possível, em qualquer das artes, colocar a excelência ao serviço do humanismo e da cidadania, numa situação em que todos saem a ganhar. |
Este semana dei com algum frisson digital à volta da capa da New York Mag e decidi prestar uma singela homenagem a Nézet-Séguin. |
Dito isto, eis as recomendações. |
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Em primeiro lugar, ouvir o maestro canadiano. E porque não começar com as sinfonias n.º1 e n.º3 de Florence Price, com a Orquestra de Filadélfia, numa gravação de 2021 para a Deutsche Grammophon. Os ouvintes dos Encontros com a Beleza irão encontrar aqui a música que faz de genérico ao podcast, que é nada mais nada menos do que a Juba Dance, o terceiro andamento da primeira sinfonia. |
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Em segundo lugar, ver o maestro. A Met tem o seu próprio serviço de streaming, uma iniciativa inovadora que tanto está disponível online como tem transmissão em algumas das principais salas de espectáculos do mundo inteiro. Em Lisboa, o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian é desde há mais de dez anos palco destas transmissões. A próxima será só em Março de 2023, mas é sempre possível assistir online. Há uma enormidade de arquivo disponível, desde títulos com Maria Callas a preto e branco até interpretações dos nossos dias.
Podem saber mais no site da Met, mas talvez tenham de esperar uns dias porque à data em que escrevo, o site está em baixo devido a um ataque informático. |
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Por último, recomenda-se o documentário de Susan Froemke, The Opera House, que revisita a história centenária da Met numa viagem ao arquivo fascinante desta instituição. O documentário é de 2017, pelo que também assinala o fecho de uma nova época, pois pouco faltava para estalar o escândalo de James Levine e, uns anos depois, a Met quase fechar por falência devido à pandemia. Podem vê-lo via Apple TV ou, se forem mais conservadores, comprar o DVD online. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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