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Banda sonora de despedida |
Funeral é um conjunto de músicas com mais de duas horas e meia de duração, que ilustra a viagem entre a vida e a morte de Ryuichi Sakamoto. Uma compilação de uma lucidez, originalidade e significado tocantes que merece ser ouvida e conhecida. |
No dia 15 de Maio, a equipa do compositor japonês publicou nas redes sociais a existência desta lista, assim como uma breve descrição do seu contexto: trata-se do conjunto de músicas escolhidas a dedo pelo próprio, na fase terminal da doença, para serem tocadas no seu funeral. |
Pela informação disponível em todos os meios à data em que escrevo, não me é possível apurar se de facto estas músicas foram mesmo tocadas (o que faria da cerimónia bastante longa) ou se terá sido dada a ouvir em contexto privado, para aqueles que eram íntimos do compositor. Ou, também é possível, se calhar esta é a playlist de um funeral imaginário. |
De resto, todo o processo da sua doença e fim de vida foi abordado com enorme recato, havendo apenas aqui e ali algumas indicações de que o compositor era doente oncológico e tendo a sua morte sido comunicada ao mundo apenas alguns dias após ter decorrido. Nada de mediatismo, sensacionalismo ou sequer partilhas diárias dos pequenos reveses e conquistas do quotidiano, como hoje estamos habituados a ver na janela voyeurista das redes sociais. |
A primeira surpresa ao descobrir esta playlist é que, como diz a sua equipa, Sakamoto esteve envolto em música até ao fim. Já não podendo ele próprio criar ou interpretar, dedicou-se à escuta da música dos outros. No fundo, a música da sua vida. E a segunda surpresa, para quem quer que abra a playlist e a passe na diagonal, é que não há aqui nenhum tema seu. |
Será isto um exemplo de humildade? A procura de algo que nunca conseguiu obter na sua música, buscando-o na dos outros? Ou simplesmente um ouvido atento à música do mundo, ao contrário de muitos artistas que optam por cortar laços e não se deixar contaminar com a criatividade alheia? Não sabemos, nunca saberemos. Mas a música em si pode dar algumas respostas e é uma viagem que recomendo muito que façam. |
Haloid Xerrox Copy 3 (Paris). É este o título invulgar da música que abre a playlist. O autor é o alemão Alva Noto, já colaborador com Sakamoto em diversas ocasiões e a música é a entrada perfeita para esta viagem. Trata-se de uma faixa com mais de 11 minutos, construída a partir de um bordão de sintetizador etéreo, distante e frio, que muito lentamente se vai fazendo vivo. O título não nos ajuda em nada e remete para aqueles solilóquios que por vezes os artistas têm consigo mesmos, quase fazendo gala de propor títulos intransponíveis. Haloid era o nome da companhia que hoje conhecemos como Xerox (a mudança ocorreu em 1958), o que não nos dá qualquer pista sobre a música em si. O melhor é mesmo fechar os olhos e aceitar a viagem tal como ela é. Os sentidos sugerem-me uma viagem lenta através de um espaço escuro, como seria por exemplo uma deslocação interestelar. No fundo, a transição entre a vida e a morte, para quem, como eu, não faz a mais pequena ideia sobre o que seja o lado de lá. |
É música que não conhecia mas que já ouvi várias vezes, sempre com a mesma sensação de espanto. E, só por isto, já estou agradecido a Sakamoto. |
A partir daqui, a playlist torna-se um pouco mais convencional, com grande peso na música clássica e enfoque no aspecto mais minimalista dos compositores franceses Gabriel Fauré, Claude Debussy, Maurice Ravel e Erik Satie, e com um centro gravitacional em torno de Johann Sebastian Bach, o que não é surpresa: Sakamoto sempre foi devoto de Bach e tem mesmo alguns trabalhos publicados em disco que não são mais do que construções livres sobre a música de Bach. Destaco o disco de homenagem a Glenn Gould, em colaboração com Alva Noto, o pianista luxemburguês Francesco Tristano e Christian Fennesz. |
Também há alguma música de filmes (vintage, é claro), com Georges Delerue, Ennio Morricone e Nino Rota. |
O principal é música instrumental, acústica ou sintetizada, quase sempre evitando a voz cantada. As excepções são praticamente todas em língua francesa e a que mais desponta é a canção A Paris chaque faubourg, uma velha chanson dos anos 1930, com letra de René Clair, que a escreveu para o seu próprio filme 14 de Julho, de 1933, e que certamente terá uma história pessoal para Sakamoto, uma vez que é claramente a ovelha negra dentro da playlist. Não faço ideia o que poderá querer dizer, mas desconfio que remeta Sakamoto para uma ideia de juventude, como de resto esta canção de amor nos faz sentir. |
Foi cantada por nomes como Yves Montand, Patachou, Georges Brassens e muitos outros, mas Sakamoto optou pela versão original, com a patine dos seus noventa anos de história, na voz de Lys Gauty. |
Menos surpreendente será o encontro com a voz de David Sylvian em Orpheus, ele que dá voz àquela que foi a música principal de todo o repertório de Sakamoto: Forbidden Colours, o tema de 1983 que conhecemos do filme Merry Christmas, Mr. Lawrence de Nagisa Oshima. |
Não deixa de ser curioso que a escolha, de entre todo o repertório de David Sylvian, tenha recaído sobre o mito de Orfeu, aquele que, com o poder da sua lira, desce ao Hades e acalma as fúrias que guardam o reino da morte, onde resgata a sua perdida Euridice, trazendo-a de volta ao mundo dos vivos. |
No que diz respeito à música clássica, campo onde me sinto mais à vontade, não posso dizer que tenha sido surpreendido pela novidade ou pelo inesperado. O que senti, isso sim, foi a validação do dedo de mestre de Sakamoto. Há aqui muito pouca música “óbvia”. Talvez a sempiterna primeira Gymnopédie de Erik Satie (na versão orquestrada por Debussy), ou a Sarabanda de Handel, tornada famosa pelo filme Barry Lyndon, embora Sakamoto tenha optado por uma interpretação com muito menos pathos do que a que Stanley Kubrick escolheu. |
Esta música, através do cinema, passou à história associada a uma marcha fúnebre: música de enorme verticalidade, que transpira uma sensação de fatum ao qual não podemos escapar. Tal como a morte inexorável e invencível. |
São várias as leituras possíveis da morte através desta playlist. Por um lado, ao escolher a canção de Gabriel Fauré O mort, poussière d’étoiles [“Ó morte, pó das estrelas”], sobre um poema de Charles van Leberghe, podemos ler um Sakamoto ansioso por finalmente realizar a derradeira viagem, com uma vontade mística ou quase pagã, ou não abrisse o poema com os seguintes versos: |
Ó morte, pó das estrelas
Levanta-te sob os meus passos!
Vem, doce onda brilhante,
Pela escuridão;
Leva-me para o teu nada!
Vem, brisa suave em que vacilo,
Como uma chama ébria de vento!
Em ti quero esticar-me,
Esticar-me e dissolver-me,
Morte, aspiração da minha alma! |
Por outro lado, na escolha do coral O Haupt voll Blut und wunden [“Ó cabeça sagrada, agora ferida”], da Paixão segundo São Mateus de Bach, poderíamos ler um Sakamoto devoto, procurando na beleza da piedade e da fé um salvo-conduto para uma morte tranquila e em paz. |
No entanto, o caminho do pensamento não estaria completo se não houvesse espaço para ler também uma celebração da vida e da vida dos sons. O único exemplo de música japonesa na playlist é uma composição de Toru Takemitsu. Honestamente, esperaria encontrar aqui o seu intenso e extraordinário Requiem para orquestra de cordas, mas a escolha de Sakamoto vai para uma partitura decididamente menos lírica. Trata-se do momento mais espartano de toda a playlist e que vem com maior dureza para o ouvido. A obra é The Dorian Horizon e, para mim, só faz sentido se for ouvida com o espanto e sentido de deslumbramento que pode ter alguém que está bem vivo e atento ao mundo à sua volta. Só assim é que estes sons, aparentemente estranhos e em conflito entre si mesmos, podem fazer sentido a conviver com tanta música onde reinam outros factores de beleza. |
Não pretendo com este texto analisar as músicas uma a uma, nem sequer fazer uma exegese definitiva da playlist. Queria apenas chamar a atenção para a sua existência, pois suspeito que os meus leitores encontrarão nela muita beleza que podiam conhecer ou desconhecer. A playlist é tocante, original e especial. E conclui-se, de certa forma fechando o círculo, com uma peça intitulada Breath, da norte-americana Laurel Halo, cuja linguagem estética é bastante parecida com a música que abre a lista. Vamos de novo rumo ao nada, ao minimalismo total, da música lenta e vazia. O som é sintetizado, o que anula toda e qualquer réstia de impressão digital humana, e de novo aqui estamos, a fazer esta estranha viagem rumo a paragens incertas. É como se estivéssemos imóveis, afinal de contas, tendo toda esta música que ouvimos entretanto sido não mais que um sonho. |
A escolha de abrir e fechar a playlist com estas duas músicas não pode ser um acaso. Há claramente uma ideia de viagem. Quais os seus significados, isso cabe a cada qual decidir. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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