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Quando a separação é a melhor garantia de harmonia |
Quando me convidaram para escrever sobre Família, nestas newsletters do Observador, pensei logo que teria de o fazer na ótica do utilizador, isto é, partindo da minha história pessoal para um olhar mais alargado. Como não sou psiquiatra, psicóloga, pedagoga, socióloga, nem tenho qualquer outra profissão que se dedique à análise e estudo dos seres humanos em contexto familiar, só posso escrever sobre o que vivo, o que observo e, esticando um pouco a corda e saindo claramente para fora de pé, sobre o que estimo que outros possam sentir e passar, mesmo que eu nunca tenha sentido ou passado. É um risco, claro, porque – a menos que sejamos estudiosos do tema (e, por vezes, mesmo nesse caso) – tendemos a ver o mundo pela nossa perspetiva. |
A verdade é que sendo neta, filha, mulher e mãe de quatro filhos, já para não falar do facto de ter sido jornalista durante vinte anos e, por isso, testemunha próxima de múltiplas histórias familiares absolutamente distintas da minha, há um leque extenso de matérias de que me sinto habilitada a botar prosa, sem a sapiência dos especialistas, é certo, mas como alguém que já passou por e assistiu a alegrias, tristezas, sustos, traumas, medos, ansiedades, revoltas, ódios, orgulhos, vaidades, dúvidas, certezas, arrependimentos, culpas. |
Falar de divórcio podia, pelas razões enumeradas acima, ser um desafio, uma vez que estou casada há quase 23 anos com o mesmo homem, e mais feliz do que no primeiro dia em que me comprometi a ficar casada para sempre (não vou negar: comprometi-me achando que ia, obviamente, falhar). Acontece que, pegando ainda na ideia da escrita começada na ótica do utilizador, sou filha de pais divorciados. E, por isso, sei o que é um divórcio e o efeito que teve em mim. Sobre outros divórcios e efeitos que teve em outros, só posso falar do que vi, do que soube, e do que imagino que se sinta. |
O divórcio dos meus pais parece ter tido um efeito ruim na minha vida, apenas quando o meu pai deixou de voltar para casa. Eu tinha 3 anos e terei regredido no que concerne ao controlo do esfíncter. Aparentemente, foi essa a forma que o meu subconsciente encontrou de designar aquela situação como, nada mais nada menos, do que fecal (as crianças são muito diretas). Mas, tirando isso, não me lembro de ter sofrido. Do tempo em que viveram juntos, só tenho dois tipos de recordações: as muito boas, e as muito más. As muito boas envolvem lanches com bolo e nós os três, contentes; as muito más envolvem discussões e portas a bater. Creio que senti mais alívio do que tristeza, ainda que o meu intestino se tenha rebelado, mas acredito piamente que resolvi bem esse assunto dentro de mim, e que a minha vida não teria sido a mesma se o meu pai tivesse continuado casado com a minha mãe. |
Na verdade, estou até hoje para compreender como é que dois seres humanos tão nos antípodas um do outro podem ter achado boa ideia juntar-se e formar uma família. É simplesmente ridículo. Bem sei que houve um dia algum idiota que achou giro transportar a teoria da Física sobre a atração dos opostos para a vida amorosa, mas não acreditem, porque é só parvo. Quanto mais parecidas e com interesses similares forem duas almas, mais provável é que a coisa resulte. Já dizia o Rui Veloso: “Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”. Não iria tão longe, mas estou mais com ele do que com o idiota dos opostos. Ou melhor, até podem atrair-se, mas por amor de Deus, resolvam o assunto num hotel qualquer, e continuem com as vossas vidas, separadamente. |
O divórcio dos meus pais foi diferente de muitos divórcios que já conheci, que já acompanhei de perto, e que já vi no cinema. Lembro-me de ver o filme Kramer contra Kramer, só para dar o exemplo de um clássico, e de pensar “que sorte não ter sido esta a minha realidade”. |
Os meus pais divorciaram-se, mas continuaram amigos, até hoje. Aliás, tenho a certeza de que quando um morrer, o outro vai morrer um bocadinho logo a seguir. Claro que há ressentimentos que não se esquecem, mas o modo civilizado como tudo decorreu (pontuado aqui e além por algumas crispações), a forma como sempre se defenderam quando o caldo se entornava entre mim e um deles (e eu, espertinha, buscava consolo no outro lado), e a forma como a minha mãe recebeu a nova família do meu pai em Natais, aniversários e outras situações, é absolutamente exemplar. |
A minha madrasta é outra pessoa de quem não posso deixar de falar e exultar como um pilar fundamental do meu crescimento. Não consigo entender madrastas (e padrastos) que, em vez de olharem com amor para aquela criança que lhes caiu no colo sem que tivessem pedido, em vez de a olharem como uma parte importante da pessoa que escolheram para partilhar a vida, a olham tantas e tantas vezes como um inimigo, um estorvo, um concorrente, uma pedra na engrenagem. |
A minha madrasta sempre me tratou com amor, com cuidado, sempre inventou o que fazer comigo, mesmo quando não era a sua obrigação (e o meu pai ficava a dormir por ter ido sair com os amigos na véspera), sempre ouviu os meus desabafos. Tinha uma vantagem sobre a minha mãe que era, justamente, a de não ser a minha mãe. Por isso, não lhe competia a parte chata de educar, de se zangar, de impor ordem e disciplina. Ela era mesmo só amor. |
E mais: como a minha mãe estava obstinada em “infligir-me” responsabilidade, cumprimento e rigor (infligir-me é a palavra, porque era tudo bastante sofrido), coube à minha madrasta a parte de me dar bolachas, de me deixar deitar tarde e de passarmos horas a sonhar com roupas e outras futilidades que eram coisas que, do outro lado, simplesmente não existiam. |
Conheci muitos casos diferentes do meu e, talvez também por isso, nunca tenha sentido que o divórcio dos meus pais tenha tido impacto em mim. Acho mesmo que o único impacto que teve (a ter tido algum) foi o de me transformar numa mulher mais equilibrada (com os seus desvarios, claro). |
A verdade é que não concebo viver com o meu pai, por mais que o ame, e sobretudo suspeito que a nossa convivência diária, com as discussões com a minha mãe (que seriam seguramente crescentes), poderia ter dado muito para o torto ali pela minha adolescência. Quase poderia escrever, se não fosse tão avessa a certezas, que teria seguramente dado para o torto. |
Quando oiço pessoas desculparem-se com os filhos para não darem um golpe de misericórdia no casamento, fico sempre abesbílica. Como assim “não te separas por causa dos teus filhos”? É também pelos teus filhos que devias separar-te! Se já não és feliz, se isso já é só azedume e raiva, que exemplo de relação estás a passar-lhes? Se é verdade a teoria que diz que os miúdos têm uma tendência para reproduzir os modelos que observaram na infância, é mesmo esse o modelo de vida que querem passar para os vossos filhos? |
Em tempos, conheci um casal que refez a sua vida. Ela tinha-se separado e tinha um filho; ele tinha-se separado e tinha uma filha. Eram felizes juntos, pareciam-me mesmo poder entender-se para todo o sempre, mas a forma como a nova mulher tratava a filha dele dava cabo de mim. Quando estavam os quatro juntos, havia uma diferença de tratamento das crianças que era dolorosamente evidente. A filha dele era sempre a culpada de alguma asneira que acontecesse (mesmo que tivesse sido feita pelo filho da outra), e a incapacidade daquela mulher gostar da criança que não era sua filha chegava a fazer doer. |
O pior, ainda, era a complacência do pai, que fingia não ver a hostilidade sempre presente, os castigos e palmadas aplicados por tudo e por nada e a injustiça de muitas situações. Ele tratava o filho da nova mulher nas palminhas (e bem), mas fazia de conta que a mulher tinha só alguma impaciência para com a sua filha (e mal, porque era bem mais do que impaciência). Quando assisti a alguns episódios desta triste saga, só conseguia imaginar como devia ser duro para aquela menina, tão pequena, saber que ao fim-de-semana teria de ir para casa do inimigo, onde já sabia que não era bem-vinda, bem recebida ou bem tratada. |
Agora que acabo de escrever isto, penso que talvez resida aqui a explicação para aquela “desculpa” referida umas linhas acima, de as pessoas não se separarem por causa dos filhos. Será que têm medo de que os ex-parceiros arranjem novos companheiros que maltratem os seus filhos? É rebuscado? Não sei. Quando se tem filhos consegue traçar-se cenários dantescos. Por exemplo, a minha mãe nunca refez a sua vida amorosa porque, entre outras razões, tinha receio de arranjar alguém que não me tratasse bem. Tenho pena. Por um lado, porque podia acontecer que me tratasse lindamente e eu tinha ganho mais um elemento importante na minha geografia afetiva, por outro, porque poderia ter feito a minha mãe feliz, que creio que foi algo que ela desvalorizou tempo demais, durante a vida. |
Outra coisa abjeta que acontece muitas vezes nos divórcios é o uso dos filhos como arma de destruição maciça. Fiz em tempos uma reportagem sobre alienação parental que me revolveu as entranhas durante muito tempo. Pais e mães que impediam os ex-companheiros de ver os filhos, que inventavam mentiras para os afastar, que faziam autênticas lavagens cerebrais aos miúdos, que denegriam a imagem do outro progenitor, desfazendo laços, destruindo vidas, sem qualquer pudor. Todos nós temos conhecimento de um caso famoso, que se arrastou anos nos tribunais (não sei, aliás, se ainda se arrasta, perdi-me entre tantas temporadas daquela triste série), em que o pai arrastou a imagem da mãe para um lodaçal ignóbil, manipulando as crianças a seu bel-prazer, com repercussões a curto, médio e longo prazo, difíceis de imaginar. |
Há até, neste jogo sórdido que pode ser o divórcio, quem invente abusos sexuais por parte do outro progenitor, com o único intuito de se vingar por desavenças várias durante o casamento, ou simplesmente pelo despeito de ter sido deixado. Como é possível ser tão miseravelmente mesquinho, narcísico e psicopata? Antes que confundam as minhas palavras, que hoje em dia é muito fácil ler tudo na diagonal, deixo já o sublinhado: é evidente que existem, com efeito, pais criminosos, que não só devem como têm de ser afastados dos filhos-vítima. Não é a estes casos que me estou, naturalmente, a referir. |
Em jeito de conclusão, diria que um casamento que está há anos a tentar ser reanimado sem sucesso (mas com empenho, não é só a ver se renasce sem lhe aplicar um curativo, um antibiótico, ou até mesmo um desfibrilhador), mais vale que termine. Mas que termine em paz. Não tem de ser uma paz imediata, que nem todos somos assim tão zen, e nem todos os finais são isentos de algum drama. Mas quem tem filhos devia mesmo pôr as suas dores num compartimentozinho à parte, e tentar que eles consigam sair desse momento sem muitas marcas. |
Eu, como vos disse, sinto-me uma afortunada: fiz anos há dois dias e reuni, em casa, a minha mãe, o meu pai e a minha madrasta. Os meus filhos chamam “avó Fé” à minha madrasta e os filhos da minha irmã chamam “avó Zita” à minha mãe. Daqui a nada é Natal e vamos passar a consoada todos juntos, com a família do meu marido. Divorciados sim, mas civilizados e, no caso deles, amigos para sempre. Afinal, da sua relação nasceu este produto tão bem acabado. Como não celebrar isso?* |
*estou a brincar. Ao nível dos acabamentos, podia estar bastante melhor. |
Vale a pena… |
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Um policial absolutamente imperdível porque absolutamente hilariante. O autor, Benjamin Stevenson, é um escritor premiado e comediante de stand up, faz um retrato de ir às lágrimas de uma família com uma série de “esqueletos no armário” (e alguns fora dele), e é uma espécie de homenagem ao policial britânico clássico. Completamente original, muitíssimo bem escrito, só tem um senão: é dificílimo parar de ler.
(ed. Asa) |
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O texto é de Marcos Caruso mas a peça foi encenada por Miguel Thiré e tem no elenco: Bruno Madeira, Carlos Areia, Isabela Valadeiro, José Raposo, Matilde Breyner, Rafael Medrado, Rui Unas, Sara Barradas e Telmo Ramalho. A comédia retrata as confusões da empregada Palmira, que leva a que os patrões pensem que estão a ser alvo de infidelidades. Palmira consegue instalar a dúvida na cabeça de todos e é rir do princípio ao fim com uma série de situações em que cada um de nós se podia ver envolvido.
No Auditório dos Oceanos (Casino Lisboa), quarta-feira a sábado às 21h00, domingo às 17h00. Preço: 18€ a 22€ |
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Uma viagem imersiva pela vida da artista mexicana. Fotografias históricas, filmes originais, diversos ambientes sonoros e artísticos que reproduzem momentos relevantes na vida de Kahlo, mostrando a história por detrás do ícone.
Depois de ter estado no Porto, a exposição chegar agora a Lisboa, mais precisamente ao Reservatório da Mãe d’Água, nas Amoreiras. Várias sessões disponíveis das 17h às 20h30. Duração: 1h15. Preço: 15€ |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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