Tiveram filhos por cesariana? Chumbam no teste |
O mundo das mães é um mundo de luta pela mais forte. Pela melhor. Pela que sabe mais do que as outras. O mundo das mães é uma selva. Há as que sabem, há as que aparentemente não sabem nada, há as que ensinam, há as que aprendem, e depois há as que só tentam fazer à sua maneira, tentando ignorar todos os conselhos sábios que recebem sem terem pedido, e que podem ser totalmente contraditórios (e geralmente são). |
O mundo das mães não é fácil. Há que estar preparada para sobreviver. E uma mãe não nasce quando nasce um filho. Não. Uma mãe pode nascer a partir do momento em que o teste lhe mostra os dois tracinhos (ou, no caso dos mais modernos, um emoji sorridente acompanhado de um “Grávida”). A partir desse momento, uma mãe abre uma porta para uma categoria “superior”. Sobe um degrau na escadaria social. Torna-se uma mãe em potência. Sábia. Uma espécie de portadora do Messias. Um ser especial. Um unicórnio. E, quando uma mulher sente baixar em si todo este endeusamento, pois que Deus nos ajude. |
Nesta competição em que as mulheres entram quando se tornam mães, há um campeonato que me enerva particularmente: o campeonato do parto. Não sei se sabiam (se são mães saberão certamente, se não são talvez desconheçam), mas uma mãe é mais mãe se parir de forma natural, leia-se por via vaginal. Mais mãe ainda se não levar epidural. E, para se tornar uma mãe a um nível sobrenatural, só se se fizer tudo isso e tiver estado 840 horas em trabalho de parto, num sofrimento excruciante, e a criança tiver nascido com fórceps, ventosas e toda a sorte de instrumentos que nos remetam para um tempo medieval. Uma vénia para essas mães, que entram nesta liga muitos pontos à frente de todas as outras, para quem foi “fácil” ter a criança. |
Não sei se isto é uma coisa portuguesa, a mesma que nos leva sempre a dizer que “vamos andando”, e que nos faz carpir mágoas e amar o fado. Não estudei outros povos para saber se é igual, se uma mãe também se mede pelo tamanho do sofrimento que implicou trazer os filhos ao mundo (mas pelos artigos que descobri sobre o julgamento permanente das mães umas às outras, parece-me que é um fenómeno global). |
Aqui é inequívoco. Parto natural sem epidural e com sangue, suor e lágrimas: 20 valores. Parto natural com epidural e apenas alguma dor e cansaço: 15 valores. Parto natural com epidural e rápido como um relâmpago: 10 valores. Cesariana: chumbo. Mesmo que a cesariana não tenha sido “escolhida” pela mãe, atenção. Sabemos que há mães que combinam previamente com os seus médicos a cesariana como procedimento a seguir, mas mesmo as outras, as que estiveram em trabalho de parto mas não conseguiram expulsar a criança pela via “normal” e acabaram por ter de fazer uma cesariana como último recurso, mesmo essas, têm uma má nota neste primeiro teste da maternidade. Búuu, mães de segunda categoria, logo para começar. |
Não falo à toa. Tive quatro filhos, todos nascidos por cesariana, infelizmente. Foi como chumbar quatro vezes. As mães “verdadeiras” olhavam-me ora com dó, ora com desdém. E não se limitavam a olhar (era bom, era). Diziam coisas como: “Oh, de cesariana também eu!”, ou “assim é fácil”, ou “assim também eu ia aos quatro”. Claro. Porque ter a barriga aberta uns 15 ou 20 centímetros e um corte em sete camadas de profundidade (pele, gordura, fáscia muscular, músculo, peritoneu parietal, peritoneu visceral e útero) é um passeio no parque. É tão agradável como comer croissants. |
Mas saltei etapas importantes nesta história. Quando engravidei, começou logo a lavagem cerebral. Não era tanto a importância de ter um parto natural por ser melhor para o bebé e por ser, como o nome indica, mais “natural” do que uma intervenção cirúrgica. A questão era mais do domínio da tal competitividade. O parto foi-me vendido como uma maratona, da qual só sairia vencedora se chegasse à meta, que era o parto vaginal. Só assim poderia almejar chegar ao pódio das mães. Uma cesariana era como fazer um corta-mato manhoso e, em vez dos 42 quilómetros, correr apenas dois e com recurso a doping. Não havia mérito nem honra numa aldrabice dessas. |
Foi assim, imbuída deste espírito de missão, que cheguei ao hospital para a minha maratona. Avisei logo que não ia querer cá dopings (leia-se epidural) e que ia ser uma corredora extraordinária. Tinha obviamente frequentado as aulas de preparação para o parto (com uma mulher cruel que tratava as mulheres de forma rude e sem pingo de humanidade, desprezando as que voltavam depois de terem bebé, derrotadas, descrevendo em voz baixa as suas miseráveis cesarianas) e estava preparadíssima. |
Só que não. |
Ao fim de quatro ou cinco horas, gania que eu sei lá, insultava o meu marido, esquecia as lições repetidas até à exaustão de descontrair o corpo como forma de auxiliar o trabalho de parto, a criança, e não sei quê, e começava seriamente a considerar a hipótese de ter o meu primeiro momento de fraqueza maternal e pedir uma anestesia. Mas aguentei-me. Até que, seis horas depois, e sem que o bebé tivesse descido um milímetro para a porta de saída, o obstetra me aconselhou a fazer uma cesariana. A criança era enorme, estava longe de estar colocada, e era o melhor a fazer. Foi como levar um carimbo no lombo: falhada. |
As outras vezes desembocaram em cesarianas por diferentes razões, sempre alheias à minha vontade. Só à quarta consegui apaziguar a culpa. Já tinha 40 anos, já sabia que não é o parto que faz uma mãe, e que é absolutamente indiferente para o campeonato (que, de resto eu já não estava a disputar) o modo como nasce, desde que seja o mais seguro, o mais indicado, o que tiver de ser. |
Compreendo todos os argumentos a favor da redução do número de cesarianas que se fazem por dá cá aquela palha, sobretudo por razões financeiras, nos hospitais privados (uma cesariana sai bem mais cara e, por isso, dá mais lucro). Que diabo, para todos os efeitos, é uma intervenção cirúrgica, com todos os riscos que uma intervenção cirúrgica sempre tem. E está provado que não é o modo ideal para um bebé nascer, ou não tivesse o corpo da mulher nascido com a habilidade de expulsar uma criança (pelo menos alguns corpos de algumas mulheres). |
O que não compreendo nem aceito é esta forma de rotular quem, por opção ou por azar, não teve um bebé por via “natural”. Como se fôssemos menos. Como se não fôssemos plenas. Como se houvesse algo de errado connosco. Como se a nossa viagem tivesse começado com o pé esquerdo. Se depois disso não amamentarmos, mais vale talvez pensar em dar a criança para adoção, que está visto que não prestamos para tão nobre e elevada missão. |
Mães: o campeonato da maternidade não existe. Ninguém vai ganhar a taça. E sobretudo, ninguém ganha a taça na primeira etapa. Se a maternidade estivesse ganha no parto, e não houvesse mais preocupações a seguir… ainda dava de barato, levem lá isso e guardem numa prateleira vistosa. Agora, sinceramente? Com tudo o que vão ter de passar? Com todas as vezes em que vão estar à toa, a achar que são uma desgraça, a achar que falharam, a ver defeitos nos vossos filhos que — vão ter a certeza! — foram culpa vossa (mesmo que não tenham sido)? |
São muitos anos de maternidade, se tudo correr bem, malta! Muitos. Tudo o que lhes pode acontecer, todos os maus caminhos que podem escolher, todas as adversidades que eles vão encontrar, todas as dúvidas, inquietações, noites sem dormir, tudo isso põe o campeonato do parto num canto. A sério, parem de achar que por terem esfrangalhado as vossas partes pudendas em horas de horror sacrificial para porem as crias no mundo faz de vocês as mães perfeitas. O caminho acabou de começar. Boa sorte nessa caminhada de perfeição! |
Vale a pena… |
Ver o espetáculo Noite de Reis, de William Shakespeare, com encenação de Ricardo Neves-Neves
Como já vai sendo hábito, ainda não vi porque tenho uma vida bastante desinteressante, mas neste caso também tenho desculpa, porque acabou de estrear (a 26 de Janeiro). Porém, ouvi dizer tão bem que tenho mesmo de dar corda aos sapatos e ir. Calhando faço já a reserva, não vá depois não haver vaga. Diz que é de rir até doer a barriga. Noite de Reis é um retrato simples e cómico sobre o amor. Uma série de trocas de identidades e confusões levam a uma verdadeira tempestade amorosa. Além de o texto ser genial, ou não fosse Shakespeare, parece que a encenação e a representação de todo o elenco também são estrondosos.
Teatro da Trindade, Lisboa, de 26 Janeiro a 19 de Março. Quarta a Sábado: 21h; Domingo: 16h30. Bilhetes 10 a 20 euros |
Ler o livro Filhos Adultos de Pais Emocionalmente Imaturos
Tenho o livro, escrito por Lindsay C. Gibson, na mesa de cabeceira e confesso que tenho algum medo de o ler. Já fiz psicoterapia, pelo que já me curei das feridas deixadas por coisas que os desgraçados dos meus pais fizeram ou não fizeram, quando tentavam fazer o melhor que podiam e sabiam. Mas agora sou mãe de quatro e penso: serei eu emocionalmente imatura? Já terei escavacado irremediavelmente os putos? E se leio o livro e percebo que sim? Bom, mas talvez valha mais travar a fundo, se for esse o caso, ou perceber que estou no bom caminho e acelerar pela vida fora. Vou ler e logo tiro as minhas conclusões. De todo o modo, dizem na badana que este é um excelente caminho para a cura dos “emocionalmente sós”. Se é o seu caso, este livro é para si.
(Ed. Lua de Papel) |
Ver o espectáculo A Sagração da Primavera, no Centro Cultural Olga Cadaval
Com assinatura dos coreógrafos Cláudia Martins e Rafael Carriço e direção musical de Nuno Côrte-Real, esta é uma nova abordagem à obra de Stavinsky. Não sei se o autor ia gostar da dança, da videografia, do videomaping, tudo misturado com a sua música, mas é uma daquelas coisas que nunca saberemos. A verdade é que há aqui jogos de luz, dança e imagem que falam de medos, de desejos e de vontades. A obra musical é interpretada ao vivo pela Orquestra Sinfónica da ESMAE.
Centro Cultural Olga Cadaval, auditório Jorge Sampaio, 29 janeiro. Bilhetes: 10 euros |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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