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Três em cada quadro responsáveis da Administração Pública estão em regime de substituição por atrasos ou para iludir os concursos. Tudo por entre a crescente paralisia geral dos serviços e um alarmante “brain drain” que os debilita — a eles e ao país. |
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A Direção-Geral de Saúde foi fundada em 1899, então ainda com o nome de Direção-Geral de Saúde e Beneficência Pública. Repito: foi fundada em 1899, o que significa que é um dos mais antigos organismos da Administração Pública portuguesa. Ninguém sabe por quanto tempo. O episódio da não nomeação de quem substitua a directora-geral Graça Freitas que está de saída (o concurso abrirá esta segunda-feira, com muitos meses de atraso) e a demissão do sub-director-geral Rui Portugal são apenas os episódios mais recentes da degradação da uma DGS que nos últimos anos foi perdendo competências, capacidade de recrutamento e quadros. |
A história da DGS está ligada a muitos momentos importantes das políticas públicas de saúde – basta recordar que nasceu no quadro do combate a um surto de peste bubónica no Porto, ou que foi ela que montou (em 1965) o Programa Nacional de Vacinação universal e gratuito, quando era dirigida pela primeira mulher a assumir o mais alto carga da administração pública, Maria Luísa Van Zeller, ou ainda que foi a DGS que protagonizou a reforma que levou à criação dos primeiros centros de saúde, a partir de 1971, um processo supervisionado pelo director-geral de então, o médico Arnaldo Sampaio (pai de Jorge Sampaio). Mas tudo isso e muito mais é passado – o presente é a degradação de uma instituição que, mesmo podendo ser objecto de críticas, e eu critiquei-a muitas vezes, merecia melhor sorte. |
Infelizmente o que se está a passar com a DGS é apenas um exemplo do que se está a passar com o Estado português: é cada vez maior (no final do primeiro trimestre havia mais de 745 mil funcionários públicos, um record), custa cada vez mais e cada vez satisfaz menos. Um Estado em estado de semiparalisia. |
Esta formulação da semiparalisia não é minha – ouvi-a na aula de jubilação de Miguel Miranda, o anterior presidente do IPMA. Eis o que ele aí disse (texto integral aqui): A junção entre legisladores sem experiência real de administração pública, transformação da morosidade do Ministério das Finanças em estratégia gestionária do país, e moralismos vários, conduziu o Estado a uma semiparalisia e ao esgotamento dos seus profissionais. |
Mas esta formulação de semiparalisia se pecar é por defeito. Esta semana fiz um Contra-corrente sobre o tema (O Estado funciona mal, e vai funcionar ainda pior) e todos os testemunhos que ouvimos só reforçaram esse diagnóstico. E devo dizer que nessa altura ainda não tinha a informação, que me chegou entretanto, que três em cada quatro dirigentes da administração pública estão neste momento em regime de substituição, o que significa que foram nomeados sem recurso a concurso público e avaliação pela CRESAP. Desde que António Costa chegou ao Governo que sabemos que esta é a forma habitual de procedimento – primeiro faz-se a escolha política, depois permite-se que o escolhido ganhe experiência para passar no concurso e depois formaliza-se a nomeação – e que este processo tem permitido a multiplicação dos boys e dos yesmen. E o problema é que isto não corresponde apenas a uma partidarização do Estado – isto equivale também a uma subversão da alta administração pública de onde desaparecem competências próprias e um “saber fazer” que vive mal com o ambiente inquinado e calculista dos gabinetes ministeriais. |
É assim que ao mesmo tempo que a cultura organizacional se afasta cada vez mais de qualquer sentido de serviço público, ao mesmo tempo que os regimes de remunerações e carreiras não conseguem distinguir o mérito da mediocridade e tudo continua hiper-centralizado e hiper-regulamentado, a gestão corrente dos governos continua a julgar que consegue resolver os problemas acrescentando estruturas novas ao lado das antigas, o que por regra apenas acrescenta mais uma camada às ineficiências, apenas obriga a que em qualquer processo seja necessário mais um parecer, uma assinatura ou uma reunião, tornando tudo tão moroso que os funcionários desistem e os cidadãos desesperam. |
Um bom exemplo da perversidade das actuais regras é aquilo a que Miguel Miranda chamou a transformação da morosidade do Ministério das Finanças em estratégia gestionária do país. Basicamente do que se fala é de obrigar tudo ou quase tudo, da contratação de um médico à autorização para uma despesa já orçamentada, a passar pelo Ministério da Finanças. Aí, em nome das “contas certas”, tudo fica a aguardar despacho, mesmo quando já se está em situação de ruptura (ainda esta semana tivemos disso mais um exemplo, com o despacho relativo à compra de vacinas para 2023 a só ser publicado depois de o Expresso ter dado notícia do atraso e de haver já crianças que não estão a ser vacinadas). Num primeiro momento pode haver a ilusão de que assim se “poupa dinheiro” e “corta despesa”, na prática desresponsabiliza-se quem tem de gerir orçamentos aprovados, prejudica-se o dia a dia dos cidadãos e, as mais das vezes, ainda se acaba a gastar mais dinheiros públicos. |
Haverá muitos responsáveis por termos chegado a esta situação, mas agora parece existir uma absoluta indiferença pelos resultados alcançados pois o que se prefere são sempre “as narrativas”, sendo que essas “narrativas” exigem uma alta administração pública mais predisposta a servir o governo e o “senhor ministro” do que fazer ver ao governo e aos doutos ministros o que seria melhor para termos boas políticas públicas. |
O resultado, para continuar a dar exemplos da área da saúde, é termos neste mês de maio atingido um novo máximo de pessoas sem médico de família (são agora 1.757.747) ao mesmo tempo que o novo CEO do SNS continua preso à “narrativa” e faz comunicados a congratular-se por no concurso de Maio terem sido colocados mais 314 médicos de família quando 80% das vagas na região mais carenciada do país, a da Lisboa, ficaram por preencher. |
Mas já sabemos – com este Governo, sobretudo com António Costa, o que importa não é o que se faz, é o que parece que se faz. Por isso não se governa, ou mal se governa: constroem-se “narrativas”. |
PS. Por ter referido Miguel Miranda e a sua despedida da administração pública por ter atingido o limite de idade não queria deixar de referir também a última entrevista que deu ao Público, publicada no dia em que deu a sua aula na Faculdade de Ciências de Lisboa: “Nós vamos passar resvés ao icebergue”. Nessa conversa, onde naturalmente se fala muito de clima, também se explica como está a ocorrer o enorme “brain drain” que nos debilita como país. |
Os pátrias que somos nessa pátria chamada Europa |
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O pai de Timothy Garton Ash combateu na II Guerra Mundial, desembarcou na Normandia e a sua campanha passou por uma pequena aldeia do norte da Alemanha, Westen, onde a sua companhia estacionou pouco depois da rendição do III Reich. Por isso mesmo é em Westen que começa Pátrias – Uma História Pessoal da Europa, o mais recente livro deste autor que quem costuma ler o Macroscópio sabe que aprecio bastante. O livro, que ainda não terminei, é uma fantástica viagem pessoal pela história vivida da Europa nestas últimas décadas, uma viagem facilitada por Garton Ash ter sido uma testemunha privilegiada de muitos dos acontecimentos que marcaram o último meio século, de sobre eles ter escrito e reflectido, autor assumido de uma “história do presente” que este livro revisita de forma ora sentimental, ora erudita, teimando sempre em encontrar um europeu em qualquer inglês, francês, alemão, italiano, polaco, húngaro, português com quem se cruze. “Uma vez que o local em que nasci é Wimbledon, Inglaterra, nasci, sem dúvida alguma, na Europa e, por conseguinte, nesse sentido rudimentar, nasci europeu”, avisa-nos logo a abrir, e a partir daí vai recordando as suas muitas deambulações – como estudante, como jornalista, como académico – por essa mesma Europa, sempre para nela tentar encontrar um sentido único, mesmo que com muitas facetas e muitas interrogações. |
Voltarei seguramente a falar-vos deste livro, até porque já tenho uma entrevista marcada com Timothy Garton Ash, que estará em Portugal no final deste mês para mais um Estoril Political Forum. |
Deambulações por Lisboa e as casas que nos faltam |
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Não sei se vos acontece, mas muitas vezes deixo fechar uma exposição que gostava de ver apenas porque ela é na minha cidade e peno que haverá sempre tempo para a visitar noutro dia. Acabou de me acontecer novamente isso com uma exposição sobre “Políticas de Habitação em Lisboa – da Monarquia à Democracia”, mas felizmente que há um belo catálogo que permite recuperar um pouco do que não se viu. E é uma memória que nos faz falta, pois começa no tempo em que aquilo a que poderíamos chamar “bairros sociais” eram ainda de promoção privada (o tempo das “vilas operárias”), passando pelas muitas e diversificados políticas que foi havendo ao longo dos anos (na década de 1960 já se construíam em Lisboa milhares de casas ao abrigo de programas de “renda económica” ou “renda limitada”…) até ao último grande programa público, o PER (o tal que foi lançado, vejam lá, por Cavaco Silva). |
Folhear este catálogo é também um murro no estômago – um murro no estômago porque muitas das suas fotografias mostram-nos como em Lisboa, há 100 anos como há 50 anos, havia condições de habitação inimagináveis, a quase totalidade das quais já erradicadas, mas também um murro no estômago por percebermos como tudo parou na última década. Nisso os números são eloquentes: Na década de 1930 o Estado Novo construiu em Lisboa uma média de 206 casas por ano, essa média foi aumentando até às 806 na década de 1960, ainda em ditadura, com a democracia subiu para atingir um máximo de 1151 na última década do século passado, sendo que na década de 2010-2020, a década de Costa-Medina à frente da câmara de Lisboa, caiu para apenas 17 novas habitações por ano. Como escrevi atrás, é esta a diferença entre políticas a sério, concretizadas no terreno, e “narrativas”. Mais: por estes dias que correm contam-nos a “narrativa” de que os números da economia são óptimos, mas esquecem-se que eles derivam quase exclusivamente do turismo pois no mesmo trimestre do “milagre”, o primeiro trimestre deste ano, aquilo que contra para o futuro, o investimento, caiu, sendo que o investimento em construção caiu como não caía desde 2014, o que talvez não surpreenda muito se nos lembrarmos de como os investidores reagiram ao pacote de medidas para o sector da habitação. |
Só espero que não regressemos ao tempo das “vilas operárias”, que hoje podem ser pitorescas mas que no seu tempo correspondiam a uma falha do Estado. Por isso deixo-vos com imagens de uma das minhas visitas a um desses espaços lisboetas, o Bairro Estrela D’Ouro, hoje classificado. Foi construído entre 1907 e 1909 por um tal Agapito Serra Fernandes, industrial de confeitaria de origem galega, e se em tempos se destinou a alojar os seus trabalhadores, hoje também já lá tem o seu AirBnb. Ao menos está recuperado. |
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Tenham um resto de bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |