Tem havido frequentes ideias e comentários sobre “uma nova AD” nas eleições de 10 de Março, para favorecer – segundo alguns, garantir – a formação de uma maioria de governo à direita do Partido Socialista. Este tipo de apelos é habitual na vida política portuguesa depois do fim do cavaquismo: reflecte o prestígio e a boa memória que a Aliança Democrática original deixou no espírito popular.
Antes de 2023, tivemos diversos apelos (e, às vezes, concretizações) dessa ideia. Em 1998/99, nas lideranças de Marcelo Rebelo de Sousa e Paulo Portas, a “Alternativa Democrática” chegou a estar muito avançada para as legislativas de 1999, mas acabaria por ruir na onda do “caso Moderna”; nas eleições europeias de 2004 (“Força Portugal”), sendo líderes Durão Barroso e Paulo Portas; nas regionais dos Açores, em 2004, pela “Coligação Açores”; nas lideranças de Passos Coelho e Paulo Portas, a coligação “Aliança Portugal”, nas europeias de 2014, e a “PàF – Portugal à Frente”, nas legislativas de 2015; e, sendo líderes Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, esteve de novo em cima da mesa a coligação para as legislativas de 2022, mas o PSD acabaria por não a querer.
A Aliança Democrática de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles foi realmente na política portuguesa uma experiência única, coroada de sucesso. Não fora o atentado de Camarate que matou Sá Carneiro e Amaro da Costa, em 4 de Dezembro de 1980, a AD teria prolongado por muitos anos o seu impacto. Estava em projecto avançado a sua institucionalização. Mas, desaparecido Sá Carneiro, a química fortíssima que unia PSD e CDS dissipou-se, o PSD passou a agir como numa coligação habitual, a confiança foi-se minando, as divisões aumentaram e implodiria em Dezembro de 1982.
A AD original aconteceu há mais de 40 anos. Ou seja, todos os que têm menos de 60 anos não a viveram, não sabem exactamente como foi e por que foi. As ideias que têm dela são de fonte indirecta, às vezes atravessadas por superficialidades e mitos. A AD fez-se para vencer a maioria de esquerda, um atrevimento enorme em 1979, quatro anos apenas depois do PREC de 1975. E conseguiu-o. Se a AD tem história até hoje, é porque o conseguiu. Não chegou “ganhar” as eleições, no sentido de ser a força mais votada, ficando à frente do PS. Isso de nada serviria. Se não tivesse conseguido a maioria parlamentar, teria fracassado. Ninguém dela se lembraria mais.
No mais recente olhar simplista para a mítica AD, parece que se a olha como potenciador mágico da conversão de votos em mandatos: com os mesmos resultados, a repartição proporcional dos mandatos tende a ser mais favorável com coligação eleitoral. São as contas que se fazem agora: em 2022, os 90.000 votos do CDS, adicionados ao PSD, teriam valido mais seis deputados para o conjunto – cinco tirados ao PS (Bragança, Vila Real, Coimbra, Leiria e Portalegre) e um perdido pelo Chega (Porto). Essas contas, logo feitas pelo Público, servem talvez para avaliar a decisão de Rui Rio, mas é temerário tomá-las por certas em qualquer caso: a repartição proporcional dos mandatos não depende só dos nossos resultados, depende também do de todos os outros.
Em 1979, as listas conjuntas da AD original foram determinantes. A matemática da conversão dos votos em mandatos foi certamente positiva. Mas não foi isso que ditou o êxito da AD. O factor decisivo foi a poderosa atracção eleitoral que o desenho político da coligação suscitou no eleitorado e produziu importante mais-valia: a AD obteve, logo em 1979, mais 4,4 pontos percentuais do que as partes tinham alcançado em 1976; e, em 1980, essa mais-valia subiu ainda para 6,7 pontos. Olhando aos números concretos, a mais-valia AD correspondeu, em 1979, a mais 480.000 votos novos, que não eram de PSD, CDS ou PPM; e, em 1980, ampliou-se para 630.000 votos novos. Não foi pouca coisa.
Sem esta mais-valia eleitoral, fruto da química perfeita entre os líderes, que dominou os partidos e contagiou o eleitorado, as vantagens matemáticas na conversão dos votos em mandatos teriam sido insuficientes. O que é determinante para o sucesso ou insucesso das coligações eleitorais é a força de tracção política que é capaz de gerar, ou não. Há sempre quem concorde e quem discorde. O decisivo é que, no eleitorado, aqueles sejam mais do que estes e se suscite também significativa adesão de terceiros e abstencionistas.
A sobrevalorização da mera matemática e a desvalorização da substância política tem conduzido a fracassos nacionais ou regionais de coligações de tipo AD, que não estão à altura do seu grande prestígio histórico. Em 2004, nos Açores, a coligação PSD/CDS perdeu a aposta – e, além disso, teve maus resultados: menos cinco pontos percentuais do que, separados, tinham tido em 2000; e menos dois pontos do que, de novo separados, viriam a ter em 2008. Também em 2004, nas europeias, o PSD perderia dois mandatos e os resultados da coligação (33,3%) foram os piores obtidos pelos dois partidos até aí, embora melhores do que aconteceria mais tarde. Em 2014, de novo nas europeias, os resultados foram desastrosos (27,7%), abaixo do mais baixo de sempre, coligados ou separados. E fixou um novo patamar péssimo: nas europeias seguintes, em 2019, PSD e CDS, concorrendo separados, ficaram nesse mesmo nível, apenas um pouco acima (28,1%). Finalmente, nas legislativas de 2015, os 38,6% alcançados pela PàF foram insuficientes – o erro principal foi não decidir a coligação logo em 2014 e ter-se arrancado tarde; além de não se ter exaltado suficientemente os êxitos do governo e posto a nu as exclusivas culpas do PS na intervenção da troika. Olhando ao resultado, passou-se aquilo para que sempre alerto: ficar à frente do PS, por si, não serve absolutamente para nada; é preciso assegurar maioria parlamentar de apoio (ou, quando menos, de tolerância). Sem isto, não há vitória eleitoral.
Desde 2019, as coligações de tipo AD enfrentam dois problemas novos: a mais cavada desproporção na relação entre PSD e CDS; e o aparecimento de outros partidos “não-AD” à direita do PS. O primeiro problema diminui o poder espontâneo de tracção da coligação pré-eleitoral. Na AD original, a relação PSD/CDS era de 24 para 16; em 2011, estava em 38,7 para 11,7, relação que regeu a PàF; em 2019, ficou em 27,8 para 4,2; e, em 2022, passou a 27,7 para 1,6. Não é a mesma coisa: a coligação passa a ser monomotor, em vez de bimotor. Além disso, a chave habitual de atribuição dos lugares nas listas ficou comprometida com os resultados de 2022, por o CDS não ter elegido ninguém. São problemas que podem ser torneados, mas exigem mais inventiva e esforço maior.
O segundo problema é de destino bastante incerto e ingovernável. A IL poderia, em abstracto, integrar a coligação, mas não o quer por razões de afirmação própria. Foi mesmo abertamente desejada para acompanhar PSD e CDS, pelo que a sua recusa torna mais difícil a decisão sobrante PSD/CDS. Já o Chega não é desejado e traz problemas sérios de governabilidade à direita, que o regime só teve à esquerda até 2015. É o segundo alvo da coligação: o primeiro alvo é o PS, para o derrotar; o segundo alvo é o Chega, para, havendo nova maioria à direita, não ter peso para sabotar o governo liderado pelo PSD. Neste quadro, o papel útil crucial do CDS seria recuperar ao Chega eleitorado que tenha fugido. Se concorresse separado, deveria cumprir esse papel; em coligação, é menos óbvio como o fará.
Num quadro à direita mais volátil e aberto, com dois partidos “soltos”, é mais difícil antecipar o comportamento dos eleitores. A opção pela coligação eleitoral visará atrair mais intensamente o voto útil do eleitorado próximo. Mas poderá haver eleitores próximos que reajam ao contrário, ou porque se sintam confortados, ou porque reajam negativamente à tentativa de imposição. O mais negativo é estar-se ainda sem saber. O atraso é mau, se se fizer coligação; ainda pior, se não se fizer. No primeiro caso, lembremos 2015; no segundo, 2022.
Não se percebe por que motivo e com que intenção PSD e CDS estão a dar ao Partido Socialista (e a outros) um mês e meio de avanço. O PS tirou proveito do processo interno de definição da nova liderança, enquanto PSD mostra indecisão e o CDS também. Há imprensa que fala num acordo já desenhado para as legislativas e também europeias. Há dias, o Presidente do CDS reafirmou-se seguro para qualquer eventualidade de apresentação às urnas, com palavras enfáticas: «este esforço que está a ser feito é exatamente no pressuposto que o CDS sozinho vai voltar à Assembleia da República.» Ora, desde 9 de Novembro, todos sabemos que as eleições são a 10 de Março. O CDS devia ter já listas preparadas com 230 candidatos – se viesse a haver coligação, não seria difícil adaptar; se não houvesse, não seria apanhado descalço. As listas são, aliás, uma afirmação objectiva de capacidade, que só pode ajudar. Por exemplo, a IL mostra ter já o trabalho muito adiantado – só poderá ganhar com isso. E o mesmo faz o BE, do lado de lá.
Com listas conjuntas ou separadas, o essencial é enfrentar as eleições conscientes da fortíssima exigência deste momento. Quando a crise começou, pareceu que a direita tinha uma oportunidade como nunca teve, mas também nunca pareceu tão evidente a direita estar em situação tão má como agora. Ao fim de mês e meio da crise, o panorama à direita ainda não melhorou, nem se tornou sequer mais claro.
É importante decidir, cada parte apresentar o projecto para Portugal e partir para o terreno, onde se conquista o eleitorado. Há elevada rejeição do PS, por factores vários, mas convém não abusar de excesso de confiança. Uma coligação deve corresponder a uma ideia mobilizadora por Portugal e não parecer resposta de ocasião a interesses pessoais ou de grupo. Os partidos à direita têm de ter um discurso firme, objectivo e claro em todas as frentes em que o eleitorado se sentiu agredido ou ameaçado pelo extremismo PS ou “geringonço”, mas um discurso não necessariamente brutal e agressivo. O importante são ideias fortes e nítidas. E devem apresentar, com substância e credibilidade, propostas e rostos que vão ao encontro das necessidades do país e das aspirações dos portugueses. Não é possível escapar às questões ideológicas com que PS e geringonça encharcaram a sociedade portuguesa, mas também importa mostrar poder governar bem e por quatro anos. O PS, até com maioria absoluta (o que é espantoso!…), estatelou-se por completo após 2019 e após 2022. Os portugueses esperam quem faça o contrário e sirva bem Portugal.