Antes que comecem a chamar-me nomes, respondo à célebre pergunta de Baptista Bastos: no dia 25 de Abril estava no Largo do Carmo. Um ano depois, fui candidato à Assembleia Constituinte pelo MDP. Disseram-me na altura que tinha sido o mais jovem (pela acidental razão de ter atingido a maioridade na véspera do prazo para a entrega das listas). Como a maioria dos portugueses, tenho procurado manter-me fiel aos princípios da democracia. Não aceito que a discussão sobre as comemorações deste ano se faça através de acusações que nada têm a ver com aquilo que está em causa. Entristece-me também que estejam a circular as petições de sinal contrário que conhecemos.

Claro que a Assembleia da República deve comemorar o 25 de Abril. O parlamento não está fechado. Pelo contrário, está em atividade e tem autorizado o estado de emergência, garantindo o controlo constitucional e democrático do seu decretamento. Não se compreenderia se encerrasse no dia 25 de Abril. Com cem deputados, um pouco mais ou um pouco menos, não vislumbro que tal fosse impeditivo de se respeitarem as regras de saúde pública que as circunstâncias impõem. Estou certo de que as mesmas serão observadas.

O problema coloca-se ao nível do simbólico, como, ainda há dias, um notável artigo de Ferreira Fernandes sublinhava. Tal como é importante que simbolicamente se comemore o 25 de Abril, ademais no quadro de crise pandémica em que estamos, também é decisivo que se tenha em conta a forma como essa comemoração tem lugar. E há uma parte no modelo adotado que é particularmente infeliz. São as dezenas de convidados que estão previstos, ainda que pareça que o número tem vindo a diminuir à medida que as críticas crescem ou que os convidados recusam os convites. Todos nós temos tido comemorações para fazer neste período de confinamento. São aniversários, nascimentos, festas religiosas e lutos. Mas a generalidade dos portugueses tem-no feito com discrição e respeito pelo sentimento geral de que a circulação das pessoas se deve reduzir ao mínimo. Por exemplo, os aniversários são festejados com aqueles que já estão a viver em conjunto e uma ou outra entrada excecional de um pai, de uma mãe ou de alguém muito especial. Nas festividades religiosas, do papa ao pároco da aldeia, são eles que assumem sozinhos a celebração do evento. No que diz respeito aos que estão em lares, o contacto é sempre à distância. Nos lutos, vão apenas os familiares diretíssimos. É isto que tem sido feito e merece ser enaltecido.

É assim que o problema destas comemorações tem a ver com o significado simbólico dos convites endereçados. Naturalmente que o Presidente da República teria de ser convidado e de estar presente, bem como mais uma ou outra pessoa (talvez o primeiro-ministro, o presidente do STJ, um representante da Associação 25 de Abril ou o nepalês de que o Ferreira Fernandes falava no seu artigo), mas a ausência da pluralidade dos convidados institucionais do costume era um sinal de respeito pelo sacrifício que todos estamos a cumprir. Fazendo como fizeram, fica criada a aparência de que a Assembleia da República não se julga vinculada ao mesmo espírito de contenção. E não atirem as culpas para o presidente da Assembleia, porque a responsabilidade pertence ao conjunto dos deputados que não tiveram a sensibilidade de perceber o que parece óbvio. Na fase aguda da pandemia, por mais importantes que sejam as comemorações, não se fazem os convites que foram anunciados. Não havia necessidade. Devia ter sido dado o exemplo que não foi.

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Mas há uma segunda razão que me entristece profundamente nesta comemoração do 25 de Abril. É o silenciamento da deputada Joacine Katar Moreira, a quem – com o voto contra da Iniciativa Liberal e do Chega – foi vedado o direito de intervir na sessão comemorativa, como tinha sido proposto por Ferro Rodrigues. Bem sei que é uma deputada não inscrita, a qual tinha sido eleita como representante de um partido que hoje já não está representado na Assembleia. Todavia, a sua situação não tem nada a ver com a de outros deputados que passaram a não inscritos, os quais, quando isso aconteceu, pertenciam sempre a grupos parlamentares com uma pluralidade de deputados. É razoável o argumento de que cada deputado não inscrito não tenha o direito a intervir como se tivesse sido eleito apenas por ele próprio. Na democracia portuguesa, os deputados são eleitos a título individual, mas em listas previamente apresentadas ao eleitorado.

Porém, o caso de Joacine Katar Moreira é diferente. Nunca tinha acontecido. Ela era a única deputada do partido Livre. Com o divórcio que ocorreu entre o partido e a deputada, Joacine Katar Moreira passou a ter as limitações de uma deputada não inscrita. Ela continua a ser deputada, mas já não representa o partido. Compreendem-se por isso tais limitações, mas não que lhe seja vedado o direito ao uso da palavra no dia 25 de Abril. Nesse dia tão especial, quem votou nela não estará representado nem por ela, nem pelo partido. Nestas circunstâncias, ademais quando o 25 de Abril é celebrado no estado de emergência em que estamos, ela devia ter direito a uma intervenção que fosse a voz não só dela, mas também daquela parte do eleitorado que se continua a rever nela.

Do ponto de vista estritamente formal, talvez ela não tenha esse direito. Num tribunal português, frequentemente tão agarrado a formalismos que nos empobrecem, seria mesmo provável que não lhe dessem razão. Mas, havendo um sopro de justiça e de liberdade, é indecente que não a deixem falar. Não é por ser ela; é porque o espírito de liberdade e solidariedade que o 25 de Abril comemora o devia impor à consciência dos deputados, sobretudo no contexto histórico que atravessamos.