A um passo do cinquentenário do golpe militar que depôs a ditadura e ao qual o povo – o mesmo que escassas semanas antes ovacionou Marcello Caetano no estádio de Alvalade – ofereceu os contornos de uma revolução, será, talvez, este o tempo do balanço. Balanço, no sentido em que é preciso ganhá-lo para o futuro, olhando para o presente que temos diante da vista, mas também para os 49 anos que passaram.
Uma geração com a cabeça mais cheia de heróis e romantismos do que de ideias nunca permitiu que a data fosse olhada sob a perspectiva do futuro, mas apenas do passado. E esse passado foi sempre apenas o da ditadura e não o da própria democratização, nunca aprofundadamente avaliada. Foi uma geração, tida ela própria como progressista, que ofereceu um quase silêncio de túmulo sempre que se pretendiam debater as dificuldades da democracia e, pior ainda, quando se queriam discutir os falhanços do processo – quer do revolucionário, quer do democratizante – e que, ao mesmo tempo, permitiu que o país chegasse a este estado de impasse, sem uma réstia de optimismo no futuro que sobreviva. Ao mesmo tempo, mostra-se disponível para discutir o sucesso da democracia se o termo de comparação for exclusivamente o da ditadura, mais uma vez é a falta de futuro que impera.
É certo que, para uns, o 25 de Abril representa uma possível abertura à criação das chamadas «democracias populares»; para outros, da democracia representativa, liberal e de tipo ocidental. As comemorações da data têm sofrido deste mal até aos dias de hoje: os primeiros permanecem na defesa da ideia do «25 de Abril por cumprir», voltados para uma fantasia e uma utopia anti-popular que fracassou, e os segundos celebram-no formal e placidamente, gratos por ter vencido a segunda ideia, a da democracia representativa, quase em circuito fechado de poder, mesmo que ele se abra em formato de entretenimento às massas. E os primeiros proclamam-se democratas como se estivessem a abordar o mesmo conceito defendido pelos segundos.
Talvez por isso, as celebrações chamadas «populares» ou «cívicas» do 25 de Abril têm pugnado pela exclusão de determinados sectores políticos, ao passo que as celebrações formais da Assembleia da República ali aceitam todos os que se encontram legitimados pelo voto popular. Ao passo que alguma esquerda se julga proprietária da revolução, a maioria do país sabe que a revolução é de todos. E sabe, acima de tudo, sente, até, que essa revolução é um processo em permanente construção.
O 25 de Abril, a data em si mesma, é uma mera representação simbólica de calendário; ele, o 25 de Abril, representa, na verdade, mais um processo do que um momento. Simboliza, evidentemente, uma data absolutamente relevante, no sentido em que o golpe proporcionou a queda de uma ditadura caduca, desactualizada e inadaptada a uma nova geração e ao mundo que então a rodeava. Mas a democracia que se construiu na sequência desse golpe não se assinala apenas a 25 de Abril.
O 25 de Abril não é uma revolução. É antes um momento pré-revolucionário, uma efeméride que permite que outros acontecimentos verdadeiramente revolucionários se desenvolvam e que só podem ocorrer porque aquele os precedeu.
É por isso que o 25 de Abril não se esgota em si mesmo. Vai para além dele. O 25 de Abril é-o também na consagração de uma democracia representativa, na consolidação de uma democracia com alternativas moderadas à esquerda e à direita, na adesão à Comunidade Europeia, na democratização institucional e na liberalização económica. O 25 de Abril continua a sê-lo, pois, com a vitória eleitoral da AD, em 1979, com a revisão constitucional de 1982, com o pedido de adesão à Comunidade Europeia, em 1977, e respectiva assinatura do tratado de adesão, em 1985, e com a revisão constitucional de 1989.
25 de Abril é sempre que a democracia se revela. E sempre que ela se manifesta capaz de se proteger de si própria e dos seus inimigos – à direita e à esquerda.
Ao contrário do que é tantas vezes afirmado, a maior ameaça à democracia não advém dos populismos emergentes – que, aliás, não constituem novidade alguma. Antes decorrem de todos os factores que fazem emergir esses populismos.
A transformação da democracia praticamente numa oligarquia, em que o voto livre mantém apenas a aparência da relevância das massas populares na tomada do processo de decisão; a criação de uma certa ideia de ditadura da maioria, nuns casos, ou de ditadura das várias minorias, noutros, através da destruição, sem combate defensivo, do solo comum e dos consensos sociais e políticos mínimos; a emergência de uma nova classe de tecnocratas partidários, meros cumpridores de funções destinadas à manutenção do poder, sem ideias, sem pensamento, sem filosofia, cultivando apenas a sua dedicação servil ao chefe; a estagnação de uma economia que é utilizada quase exclusivamente para sustento do Estado e não dos seus agentes, nomeadamente dos trabalhadores e dos empresários; a degradação da vida pública, a corrupção, o recurso a zonas de fronteira entre a legalidade e a ética; a violação incontestada do princípio imanente da liberdade, pretendendo até proceder-se à legalização e constitucionalização do que é naturalmente inconstitucional e, mais grave, ilegítimo, que se revela num processo de revisão constitucional sem adversários de robustez notória; a proliferação desejada de dependentes da esmola oferecida pelo poder político e seus burocratas, tecnocratas e lambe-botas de qualquer dimensão.
O processo iniciado a 25 de Abril de 1974 está, face a todos estes factores, em risco. E esse risco tem sido proporcionado pelos auto-proclamados democratas que lamentam agora o surgimento dos adversários da democracia. Que estes o sejam, não restarão grandes dúvidas. Que os democratas estejam hoje a fazer um péssimo serviço na defesa da democracia, também não.
Mas de que nos queixamos nós, afinal, num país com uma moral colectiva que aprecia o miserabilismo e a esmola, a dependência e o respeitinho, a subserviência e o jeitinho, a cunha e a bajulação? De que nos queixamos quando politicamente elegemos representantes que mais não são do que espelhos, genuínos reflexos de quem elege?
Talvez o maior falhanço da democracia portuguesa seja o de ser como uma casa construída pelo telhado. Quando a democracia deve ser feita pelo povo, esta foi-lhe como que oferecida pelas elites, com esforços vários e dificuldades imensas. É a falta de uma sociedade livre que nos coloca, em Portugal, diante de uma democracia em situação de pré-ruína. Ela é recuperável, mas necessita de trabalhos. Esse trabalho não será feito sem sociedade. E essa sociedade não se construirá utopicamente, como num plano quinquenal.
O 25 de Abril do futuro não se fará construindo uma sociedade como um fato à medida. Far-se-á se individual e colectivamente, prédio a prédio, bairro a bairro, comunidade a comunidade, num esforço de participação que possa conduzir à geração de novos movimentos orgânicos e até partidários. A democracia é um trabalho de paciência, é ela mesma praticamente adversa à natureza dos homens. Esse esforço de civilização é urgente e necessário. Um país de serviçais não pode celebrar a liberdade em consciência, mas tem o dever moral de construir as raízes da sua própria liberdade. Será esse o 25 de Abril do futuro, o da esfera individual e comunitária, da liberdade e da autonomia – ou não terá futuro algum.