Tomando os portugueses como distraídos, de memória curta, aproveita-se para condecorar com a Ordem da Liberdade aqueles que em 1974 e 1975 foram os capitães de Abril.

Em plena Guerra fria fomos disputados, tal jogo de xadrez, pelos poderosos blocos mundiais e seus parceiros. Se por um lado tínhamos o Ocidente, Nixon e Mobutu, por outro lado a URSS e Fidel, e, em 1974, a quimera comunista era um sonho a caminho da realidade para Portugal e para as suas colónias.

O que se passou na descolonização é resumido brilhantemente pelo General Silva Cardoso, presente em Angola desde o início da guerra até à descolonização; “Já não acredito nos homens, principalmente nos políticos, e estou farto da mentira, das falsas promessas e das atitudes de fachada. Venho cansado da miséria, de ver o ódio, de ver o desespero. Venho cansado do egoísmo, da crueldade e da ambição desmedida“.

Esta frase traduz a mísera crueldade do que por ali se passava, no pós 25 de Abril, longe dos olhares do mundo, longe da comunicação social, longe de críticas, abandonando quem tanto lutou pela vida, por um país, e que viu o ódio e a ambição de uns sobreporem-se ao trabalho e à honestidade de outros.

Em Histórias Secretas da Pide/DGS, na página 100, diz Bruno Oliveira Santos: “Em Julho de 1975, milhares de soldados cubanos começaram a desembarcar em Angola, que era ainda território nacional. Trinta mil soldados estrangeiros em solo português não eram notícia para quanto a flibusteiros da informação enxameavam as redacções dos jornais portugueses e propagavam a verdade a que tínhamos direito.(…) Na capital, e com a prestante cumplicidade do Governador Rosa Coutinho, o MPLA recebe da União Soviética dezenas de tanques T-55, baterias de artilharia e mísseis, além de operadores da radar e aviadores.“(…).«Não há dúvida de que o MPLA no terreno não tinha força logística e material, por isso, introduziu no país com o consentimento dos mais radicais esquerdistas do MFA que estavam interessados em entregar Angola aos camaradas do MPLA por serem da mesma cor politica, toda a espécie de material bélico actualizado ficando, assim, em vantagem sobre os outros movimentos. Os outros partidos como a FNLA e UNITA não o desconheciam como veremos a seguir. Inevitavelmente isto iria, como mais tarde se verificou, dar em conflito armado entre o MPLA e os restantes partidos com a funestas consequência para Angola e as suas gentes e para nós os portugueses.

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Tendo como base relatos como este, a condecoração com a Ordem da Liberdade não assumirá um atentado à própria liberdade?

Liberdade estranha esta que liberta uns e oprime outros, incita à morte e pilhagem, aterroriza populações para que a fuga em massa seja a única saída possível, permitindo-nos perceber os contornos em que certas doutrinas sociais e políticas assentam os seus pressupostos, moribundos de conteúdo construtivo, empreendedor e pacificador mas carregadas de ódio e inoperância, para que possa vingar o seu vil propósito de escravatura social.

A bandeira vermelha que norteou esta traição aos países de língua portuguesa é a mesma que quase 50 anos depois apoia a barbárie no Leste da Europa.

A dor atenua com os anos, mas a memória, essa permanece viva e presente, e não raro o pensamento vagueia e traz-nos o eco dos gritos e do choro, o som das sirenes de ambulâncias exauridas, da dor da partida.

Aos 11 anos de idade, fui vítima desse terror que agora se pretende glorificar.

Nesses dias, os pássaros calaram-se, as flores murcharam e nem o sol quis dar o seu testemunho.

Os céus foram tomados por helicópteros que sobrevoavam baixo, pedindo à população para recolher a suas casas: “recolham a vossas casas, o perigo é eminente”. Jamais esquecerei esta frase.

O grito das sirenes atravessando o universo ecoam na minha memória. Só a idade permitiu não ter medo, mas só a idade permite lembranças.

Na rádio as notícias eram idênticas; o perigo aproximava-se; relatos de famílias inteiras dizimadas, corpos mutilados, violações, casas ateadas pelo fogo, edifícios destruídos, morte!

Na morgue dos hospitais acumulavam-se cadáveres, muitos com a cara pintada de graxa preta! Sim! Recordo estes relatos, mas a mentira permanecerá intacta se as vozes da verdade e da razão sucumbirem aos anos e à história.

O clima era de terror, consternação mas sobretudo de desespero e impotência.

Abandonados à sua sorte, restaram apenas as pontes áreas com espera de semanas, marcadas por rostos já sem dor mas com máscaras de pavor, inchadas pelo choro, pelo cansaço, fome e desespero.

Aviões carregados de silêncio, repletos de mágoa e de tristeza.

Muitos sem ninguém em Portugal para os acolher, colocados em condições precárias em edifícios nauseabundos, passaram fome, e só a Fé, coragem e honestidade os ajudaram a ultrapassar o novo cabo das tormentas.

Os bens materiais são os que menos importam, mas o que somos e o que vivemos permanece límpido e imaculado na memória.

Aos que fugiram da sua terra, sem nada, deixando para trás gerações empreendedoras de trabalho árduo, vidas destruídas, famílias destroçadas, desmembradas e mortificadas, apenas restou a resiliência e o trabalho.

Somos um povo de brandos costumes, alheado dos problemas sociais e políticos, fervorosos adeptos de futebol e pouco mais, merecemos respeito e sobretudo merece respeito a memória dos que já partiram em vão.

Qualquer condecoração ou medalha possui o seu reverso; neste caso, se por um lado se exalta a conquista da liberdade, o reverso da medalha esconde uma face mais obscura, em que milhares sucumbiram e outros tantos abraçaram a miséria e a dor da descolonização.