O Governo aprovou, recentemente, 300 milhões (números redondos, em rigor é um bocadinho mais) de euros para apoiar, durante vinte anos, os programas de transformação da paisagem que referi neste artigo que Henk Feith e eu escrevemos há algum tempo.

Não vou, por isso, repisar as minhas dúvidas sobre a utilidade deste dinheiro para gerir o fogo, o que me interessa é olhar para os cerca de 15 milhões de euros anuais que foi fácil encontrar no Fundo Ambiental para prometer um futuro a esta quimera.

Se em vez de aplicar 15 milhões de euros anuais num processo complicado, burocrático, pouco transparente, assente em opções do Estado (seja central, seja autárquico), e no pressuposto errado de que a transformação da paisagem que é relevante para a gestão do fogo diz respeito à alteração das espécies florestais dominantes, se optasse por alinhar incentivos de 15 milhões de euros anuais com o objectivo de mobilizar os gestores de paisagem que existem, quais poderiam ser os resultados?

Por gestores de paisagem refiro-me a quem todos os dias toma decisões e executa acções de gestão da paisagem, não me refiro às autarquias que tutelam administrativamente territórios.

Se houvesse dúvidas de que as autarquias não são, com excepções, um parceiro relevante para esta matéria, bastaria olhar para as preocupações que apresentam quando chamadas a fazer propostas para uma melhor gestão do fogo.

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Não sei exactamente que propostas foram feitas pela Associação Nacional de Municípios a propósito dos fogos, só sei o que saiu nos jornais e é com base nessa informação que vou tentar fundamentar a ideia de que entregar os recursos disponíveis às autarquias, e não aos produtores agrícolas e florestais, apenas agrava o problema, não o resolve (na melhor das hipóteses, consomem-se os recursos disponíveis e nada se altera).

O problema da gestão do fogo prende-se essencialmente com duas questões, uma mais consensual, outra menos consensual.

A mais consensual é a de que é preciso gerir a biomassa fina, havendo divergências apenas quanto ao caminho para obter esse resultado.

A menos consensual, fora dos meios em que se estuda ao assunto, é que Portugal precisa de uma doutrina de combate ao fogo florestal assente na separação das funções de protecção civil e combate ao fogo florestal (o DL 82/ 2021 consagra um princípio de especialização no combate ao fogo florestal, na sequência das recomendações da Comissão Técnica Independente criada na sequência dos fogos de 2017, mas a vida continua sem que se ligue muito ao assunto).

Ora as propostas das autarquias ou, pelo menos, da Associação Nacional de Municípios, são apenas sobre outras matérias marginais, sem grande influência na capacidade de o país gerir os fogos florestais de forma mais serena.

Em primeiro lugar, as propostas em causa prolongam um mal-entendido frequente, o de que a lei determina obrigações de gestão de biomassa fina aos gestores florestais.

Não é assim – e ainda bem, o direito de propriedade em Portugal já é suficientemente mal tratado, com péssimos resultados, de que é exemplo a lei de protecção do sobreiro e azinheira, cujo principal efeito é diminuir o número de pessoas disponíveis para plantar e gerir essas espécies -, o que a lei determina é apenas que os gestores florestais assumam os custos de garantir a protecção de casas e infraestruturas, mesmo que a vizinhança  dessas casas e infraestruturas tenha sido decidida por terceiros, sem qualquer possibilidade do gestor florestal se opor a essa proximidade.

Sendo a lei iníqua, ao ponto de atribuir responsabilidades económicas aos gestores florestais para garantir a segurança de bens de terceiros, frequentemente muito mais ricos, não é de estranhar que não seja cumprida.

Pois as autarquias, em vez de defender que a lei é absurda e deveria ser revogada, querem ter a possibilidade legal (que já têm, querem é exercê-la com menos mecanismos de controlo por parte de terceiros) de rapidamente entrar na propriedade de terceiros, executar acções de gestão que entendem e depois mandar a conta ao proprietário, coisa que, mesmo que funcione, não altera nada de relevante na gestão do fogo em Portugal (também não altera muito na segurança das casas e infraestruturas, já agora, mas não vale a pena ir por aí).

O resto das propostas vão no mesmo sentido, centradas na protecção civil (e, mais grave, nas soluções comprovadamente ineficientes consagradas na lei, incluindo o modelo de dispositivo de combate que cada vez mais abandona o combate ao fogo florestal para se centrar nas tarefas de protecção civil) e na vigilância, ignorando que o problema central está na gestão da biomassa fina e na necessidade de um dispositivo profissional de combate estreitamente articulado com as acções de gestão dessa biomassa fina.

Resumindo, as autarquias consideram os gestores florestais essencialmente como a fonte do problema que tem de ser controlada repressivamente pelo Estado, demonstrando de forma clara que respondem aos seus eleitores (os habitantes dos principais aglomerados urbanos, cuja relação com a gestão florestal é hoje residual), só que esses eleitores não são quem nos pode ajudar a gerir o problema.

O Estado central, as autarquias e as sociedades urbanizadas que temos continuam a olhar para o problema da gestão do fogo na perspectiva da protecção civil, das mudanças de coberto florestal e do controlo repressivo das ignições, em vez de olharem para o problema como ele é: uma questão de economia.

Se 15 milhões de euros por ano fossem entregues aos gestores de biomassa fina que existem, de forma simples e para pagar esse serviço de interesse geral, poderíamos estar a pagar parcialmente a gestão de 100 mil hectares de terreno por ano, ou seja, meio milhão de cinco em cinco anos, cerca de 8% das áreas florestais do país, o que já é relevante para a gestão do fogo, sobretudo se, em simultâneo, a doutrina de combate for alterada para que o dispositivo reforce o combate florestal, com base nas oportunidades criadas pela gestão.

Muito mais relevante, no entanto, é que esses 15 milhões reforçariam directamente a economia que gere biomassa fina, tornando-a mais forte e mais capaz de investir e alargar a sua área de influência, comprando terrenos, fazendo contratos de gestão com terceiros e melhorando a qualidade de vida dos gestores dos territórios e das comunidades em que vivem.

Infelizmente os principais beneficiários directos desta opção (indirectos somos todos, porque ganharíamos maior controlo sobre o fogo) são poucos, são eleitoralmente irrelevantes e são socialmente marginalizados.

E é por isso que não tenho a menor esperança de ver mudar alguma coisa na gestão do fogo, suspeito que continuaremos, como nas últimas décadas, a atirar dinheiro para cima do problema, sabendo que quando isso acontece uma das duas coisas desaparece, mas raramente é o problema.