Referi recentemente que a Covid-19 colocou em evidência que a saúde tem de ser considerada uma questão transnacional, uma variável fundamental no desenvolvimento económico e uma questão de segurança interna. A nossa capacidade de enfrentarmos crises pandémicas que nos afetam em larga escala passou a ser uma determinante crucial, antes relativamente ignorada. A perplexidade que nos causou a súbita transformação das relações sociais, laborais, económicas verificada por força da Covid-19, evidencia o papel que a ciência, a investigação e a inovação desempenham nas sociedades modernas.
Subitamente o espaço público passou a ser dominado pela discussão científica, pela opinião fundamentada e pela discussão objetiva. Redescobrimos a relevância das discussões conduzidas e orientadas através de fatos, recuperámos a tranquilidade e a serenidade que apenas os debates públicos assentes em dados e em opiniões fundamentadas e pouco permeáveis à especulação, nos podem oferecer.
Mas, importa que a predominância que hoje reconhecemos à ciência e à investigação não se perca na espúria espuma dos dias. É natural que na sociedade imediatista em que vivemos em que o curto prazo assume uma sobrevalorização excessiva, assim que a crise pandémica se encontrar controlada voltemos a assistir no espaço público ao ressurgimento da opinião especulativa, do conflito gratuito e a polarização excessiva no debate político. Mas é determinante que não cometamos os erros já experimentados.
Quando em 2015 Bill Gates alertou para a circunstância de não estarmos preparados para combater e enfrentar uma pandemia global, foi olimpicamente ignorado. Do mesmo modo, quando a Comissão Europeia na Conferência de Davos em 2015 fez um apelo para que a comunidade internacional desenvolvesse esforços conjuntos para financiar programas de investigação na área da saúde como pilar central na ajuda ao desenvolvimento, o mundo sorriu, ignorando. Não podemos permitirmo-nos a repetir os mesmos equívocos.
Na segunda metade do século XX o grande risco para a humanidade centrava-se numa eventual crise nuclear. Atualmente o risco que a humanidade continua a enfrentar é uma crise pandémica global. A transformação verificada deve-se fundamentalmente ao fato de nos últimos 70 anos termos desenvolvido um grande investimento na prevenção de uma crise nuclear e pouco termos investido na investigação e na prevenção de uma pandemia com consequências de larga escala. Deste modo, o impacto que estamos a sentir por força da Covid-19 na economia, no mundo do trabalho, nas relações familiares, nas relações sociais, deve-se à circunstância de não termos enquanto comunidade desenvolvido o necessário investimento na ciência e na investigação que pudessem evitar as consequências que estamos a enfrentar.
E, na verdade, a questão não é nova. Se atentarmos ao que se passou com a crise do Ébola na África Ocidental em 2014, constatamos que o problema fundamental não residiu na circunstância de o sistema não funcionar de forma eficiente. A questão residiu no fato de não termos de todo um sistema preparado para enfrentar crises dessa natureza. Não tínhamos epidemiologistas suficientes e suficientemente preparados para estudarem o impacto da doença e o seu mecanismo de contágio. Por outro lado, os dados estudados foram disponibilizados à comunidade científica com imprecisões e com tremenda demora, o que dificultou o estudo da doença e dos seus impactos.
Foi exatamente o que sucedeu com a Covid-19.
Ignoramos os apelos de todos quantos nos convocaram para que despertássemos para a ameaça que poderíamos vir a enfrentar e quando subitamente ela se concretizou não estávamos preparados.
Ora, para que o mundo não seja novamente surpreendido é determinante que aprendamos com a experiência que estamos a enfrentar. E não se pense que ultrapassada a crise trazida pela Covid-19 nos encontraremos libertos de uma nova crise desta natureza. Seja por causas naturais, seja derivada da ameaça do bioterrorismo, o mundo continuará exposto a crises pandémicas com o impacto da Covid-19.
É certo que no espaço europeu se tem desenvolvido um caminho consistente no que à ciência diz respeito. Temos hoje na Europa cerca de dois milhões de cientistas, um terço da produção científica mundial é produzida por europeus, e as empresas mais avançadas na investigação da vacina para a Covid-19 utilizando técnicas RNA são europeias.
Em Portugal temos exemplos de excelência ao nível da investigação, mas a verdade é que no domínio das políticas públicas a ciência assume um lugar relevante nos discursos e pouco significativo na ação política.
Portugal comprometeu-se no quadro europeu a atingir em 2020 a meta de 2.7% do PIB em investimento em ciência e investigação, o que significaria aproximarmo-nos do valor médio da UE em percentagem do PIB investido nesta área, (3%). A verdade é que em 2019 o peso do investimento em ciência e investigação não ultrapassou os 1,5% do PIB, valor consideravelmente abaixo da média europeia.
Por outro lado, se atentarmos à circunstância de que mais de metade do valor referido ser da responsabilidade do setor privado, teremos forçosamente de concluir que as autoridades nacionais se encontram mais preocupadas em promover a organização de eventos internacionais como feiras e congressos, do que em desenvolver as necessárias condições para a construção de ecossistemas que promovam a ciência, a investigação e o conhecimento.
Sem prejuízo do fato de os congressos e as feiras internacionais que se desenvolvem em Portugal terem um papel não negligenciável no estímulo ao turismo e às atividades com ele relacionadas, não podemos confundir a organização da web summit com a criação de um ecossistema que potencie a ciência e a investigação.
Um ecossistema dessa natureza implica que exista um regime de capital de risco com dimensão e impacto, um sistema fiscal que potencie a fixação de investigadores e investidores em Portugal, um regime de patentes ágil e eficiente, um sistema judicial equitativo e célere, bem como mecanismos de interligação entre as empresas e os centros de investigação que permitam a transformação da ciência em soluções economicamente reprodutíveis.
Mas, implica também a criação de um ambiente no qual os cientistas possam desenvolver e produzir ciência em condições de liberdade. O Estado não pode deixar de assumir a sua responsabilidade de colaborar com os centros de investigação e cientistas, não só através do financiamento a projetos, mas também através do diálogo e partilha de dados cruciais ao desenvolvimento de projetos de investigação.
O que nos falta, neste domínio, é que, em definitivo, os agentes políticos compreendam que a ciência não pode deixar de ser um dos vértices estruturantes das políticas públicas em Portugal e que, nesse sentido, temos de deixar de ser um país exportador de cientistas e de investigadores, para passarmos a atrair e a manter aqueles que contribuem para o desenvolvimento da ciência e da investigação.
Neste contexto, é absolutamente incompreensível que o Governo português não apresente no âmbito do Plano Nacional de Reformas, que será discutido esta quinta-feira na Assembleia da República, uma estratégia consistente com vista à criação de uma estratégia nacional para a ciência e para a investigação, com a afirmação de metas concretas e com medidas que estimulem o ambiente propício ao desenvolvimento da ciência e da investigação. O Plano Nacional de Reformas não poderia deixar de assumir a ciência e a investigação como o vértice das políticas públicas em Portugal
O investimento na ciência e na investigação implica um pensamento estratégico de longo prazo e os seus resultados não são mensuráveis ou alcançáveis no imediato. O que se espera de quem governa é que se liberte da política do imediatismo, da incessante busca de resultados instantâneos com o propósito de incendiar as paixões das claques partidárias e alimentar as máquinas de propaganda que se encontram fixadas na sondagem do mês seguinte. O que se espera de um Governo, é que seja capaz de se desamarrar do que alguns autores apelidam de short termism, projetem o país para os desafios futuros e governem com e para as novas gerações.