“Será que a estabilidade passada da democracia resultou de condições que já não existem?”, pergunta Yascha Mounk em Povo vs. Democracia. O politólogo identifica três elementos que corresponderiam a essas condições – crescimento económico, homogeneidade étnica e centralização da comunicação de massas – e considera que a atual crise dos modelos democráticos liberais resulta de estas condições se terem deixado de verificar.
Na semana passada, debruçamo-nos sobre o primeiro desses elementos, nomeadamente o facto de a legitimidade dos regimes democráticos ter decorrido, em grande parte, da sua capacidade de gerar bons resultados económicos para a maioria da população. Este argumento, que parece legítimo, deixa-nos com uma penosa reflexão entre as mãos: significa isto que o apoio à democracia não resulta de uma convicção sincera quanto aos valores democráticos, mas meramente da satisfação com os resultados económicos que ela produz? Regressaremos ao tema noutro momento.
Por agora, importa recordar como Mounk assinala a questão das expectativas, o mesmo é dizer, o modo como o futuro e a angústia perante a incerteza futura influenciam a participação política dos cidadãos. Seria essa a razão por que é mais provável que os eleitores de Trump tenham um grau académico inferior (não é que sejam mais estúpidos, têm é mais razões para temer a globalização e a automatização) e provenham de comunidades com piores recursos de saúde, menor mobilidade social e menos capital (sentem que a sua comunidade está a regredir). É nas regiões em que a degradação económica é mais notória que os resultados de Trump são mais positivos, e onde as “mortes por desespero”, como mostraram Angus Deaton e Anne Case, se revelam. Em democracias, o receio pelo futuro revela-se um poderoso fator.
Ora, o mesmo raciocínio vale para o segundo dos elementos identificados por Mounk e que nos faz confrontar um tópico sobre o qual, por razões insondáveis, a classe política parece não conseguir falar: as rápidas e profundas alterações demográficas que a maior parte dos países ocidentais tem sofrido.
O argumento de Mounk não é novidade: os regimes democráticos, antigos e modernos, surgiram sempre em contextos de homogeneidade étnica e cultural, que constituem condições necessárias para um regime que procura determinar um destino coletivo com a participação da população. Para que a tomada de decisões possa decorrer de acordo com o espírito democrático, é necessário que a comunidade apresente um grau elevado de coesão, garantida pelo cimento social oferecido pela língua, uma história comum e elementos culturais partilhados. O mesmo é dizer: é necessário um passado comum para se pensar um futuro comum. A nossa identidade a um grupo depende dessa relação, como o historiador Tony Judt diz em O chalet da memória: “Sou judeu porque tenho uma dívida de responsabilidade para com o passado.”
Se as sociedades forem culturalmente muito díspares, torna-se difícil tomar decisões coletivas pela dificuldade em reconhecer o outro como meu semelhante (parte do problema da polarização política atual, muito assente na questão das lutas culturais, revela exatamente essa dificuldade). É essa a razão pela qual os regimes democráticos modernos foram historicamente precedidos da construção (quase sempre artificial) da nação: precisamos de um terreno anterior comum. E é também essa a razão pela qual, quando os territórios são vastos e as referências culturais múltiplas, temos impérios e não democracias.
Ao contrário do que acontece nos impérios, a cidadania democrática é muito mais do que um estatuto a que se tem direito. Tem de compreender deveres e dívidas, para com o passado, para com a história, para com a memória, e nisso se baseia o compromisso com o futuro (particularmente importante quando se fala tanto hoje em como temos de abandonar o paradigma da paz e preparamo-nos para um paradigma de guerra).
Neste sentido, ser cidadão, ser membro da comunidade, não se pode limitar a uma espécie de relação contratual, traduzida em linguagem fria, burocrática e económica como “pagar impostos” e “garantir a sustentabilidade da segurança social”. Conseguimos imaginar (com alguma aflição), uma sociedade na qual o que une os “cidadãos” é este tipo de modelo – mas quem quereria viver numa sociedade assim?
Tratar-se-ia, na verdade, de uma sociedade às avessas com a nossa biologia (dimensão que Mounk não refere), pois os contributos mais recentes da biologia e da psicologia afirmam que o nosso cérebro funciona de modo essencialmente tribal e, por isso, não consideramos naturalmente um estranho como parte do nosso grupo: as relações de confiança capazes de gerar interdependência necessitam de uma sinalização de pertença ao grupo. É por essa razão que é mais fácil acomodar elementos de grupos mais próximos do nosso, que partilham a nossa língua, parte da nossa história, a nossa religião. E é também por essa razão que, quando se discute a imigração, o vocabulário se prende com os modos de integração, sendo a assimilação o modelo mais capaz de “enganar” o nosso cérebro. O facto de o multiculturalismo ter passado a ser o modelo de integração politicamente correto (por oposição à assimilação) perturbou a capacidade de alargar a nossa noção de tribo.
Uma visão economicista sobre a imigração, que ainda por cima perceciona os imigrantes como meios para um fim, não compreende esta dimensão identitária e a absoluta ineficácia que é despejar “números realistas” para cima das populações: como Mounk assinala, o incómodo com a imigração não depende de uma percentagem entendida como demasiado alta (locais com mais imigração, geralmente cidades cosmopolitas, não são mais atraídos por propostas populistas), mas prende-se antes com mudanças demográficas demasiado rápidas (e por isso zonas que têm pouca imigração, mas que a viram surgir muito rapidamente, tendem a sentir desconforto).
A angústia demográfica resulta desta mudança brusca, que é percecionada como tendo sido imposta (e não escolhida pelas populações), e levanta receios quanto ao futuro, agravados em contexto de angústia económica e de forte emigração jovem (nomeadamente, com o chamado brain drain). O politólogo búlgaro Ivan Krastev já tinha chamado a atenção para este aspeto a propósito do pânico demográfico sentido a Leste:
“A chegada dos migrantes assinala a sua saída da história, e o argumento popular de que uma Europa envelhecida precisa de migrantes apenas reforça o crescente sentimento de melancolia existencial…. Será que daqui a cem anos ainda haverá alguém que leia poesia búlgara?”
Na última parte do livro, que Mounk dedica às soluções para os três problemas identificados, o autor é claro na afirmação de que democracias liberais devem garantir que todos os habitantes (cidadãos ou não) são tratados com respeito e sem discriminação, devem denunciar as condições desumanas em que os imigrantes chegam e vivem e devem opor-se a tentativas de exclusão só com base na fé ou na raça. Mas não tergiversa quanto ao seu direito a impor fronteiras (fazendo recordar as lições comunitaristas do seu orientador, Michael Sandel):
“O facto de as nações melhorarem a sua capacidade para identificar e controlar quem tem acesso ao seu território não constitui uma violação dos princípios da democracia liberal. Pelo contrário, fronteiras seguras podem ajudar a obter apoio popular para políticas de imigração mais generosas. Do mesmo modo, um processo simplificado para identificar e rejeitar imigrantes que constituem uma ameaça à segurança ajudará a acalmar as tensões étnicas – mais do que alimentá-las.”
É assim tão difícil falar sobre isto?