Quando somos mais novos, já depois da idade dos porquês, restam diversas perguntas que doamos, com carinho e ingenuidade, aos nossos pais. Fazemo-lo porque queremos saber como funciona o mundo, como e porque é que as coisas são como são, o que é que podemos e não fazer, o que é certo e errado.
Das mais óbvias a outras, mais labirínticas, há as que são quase tabus, de tão pouco desejo reunirem daqueles a quem a resposta nos é devida. Mas nós, adultos, sempre fomos encontrando engenho para ultrapassar estas perguntas incómodas, de responder sem responder, de ensinar sem elucidar ou, para os mais tradicionais, de resolver apenas com um simples e final: “Essas perguntas não se fazem”.
E, se para alguns a pergunta chata era um dos clássicos (De onde vêm os bebés?), para mim sempre foi: “Mãe/Pai, quanto é que ganhas?”
Nunca percebi se a vergonha inerente à sucessão de tentativas, aflitas, de resposta a esta pergunta se deviam ao salário em si ou à intrínseca humildade das crianças que, não percebendo como este é um tópico sensível, logo no dia seguinte, faziam das várias respostas um verdadeiro concurso de popularidade.
O meu pai ganha mais que o teu.
Mas o meu é médico.
A minha mãe comprou um carro novo este mês.
A minha filha faz um ano esta semana; de mim, não verá vergonha no salário do pai. Afinal, saberá que, embora aos olhos da Europa o pai tenha um salário perto do normal, no seu país, no seu tão grande país, o pai é considerado rico, ou de classe média, vai dar ao mesmo.
Vergonha houvesse, e seria não do que o pai leva para casa, mas, sim, aquilo que o pai deixa de levar com os impostos que paga. Pois, como disse, o pai é de classe média, pelo que faz parte dos 16% de agregados familiares que suportam 84% da coleta total de IRS.
À menina, dir-lhe-ei que deve estudar. O INE, que tanta análise produz, diz-me que um licenciado ganha em média 1550 euros brutos. A ela, explicar-lhe-ei que só receberá 1100 euros, que os outros 450 euros (~28%), entre retenções na fonte e segurança social, “nem os vê”.
Se for teimosa como o pai, quererá mudar as coisas. Ela que vá para onde se tomam decisões. Afinal, se há coisa que se faz bem em família neste canto da Europa, é a política. Dir-lhe-ei que toda a gente sabe que uma deputada ganha bem. Não concordará; sucesso, ficou bem ensinada. Dir-me-á que uma deputada ganha 3600 euros brutos, mas saberá que 1500 euros (~41%) nem os vê.
Explicar-lhe-ei que há outros países, por essa Europa fora, que há muitos anos foram mais pobres que o dela, em que o Estado não lhes fica com 41% do ordenado. Todos eles nos ultrapassaram, entretanto, mas por aqui temos mais sol.
A esta altura, e depois da fábula que me é possível, entenderá que não sou o mais fervoroso adepto da tentativa (falhada) de matriz social-democrata que se vive em Portugal, replicando a carga fiscal dos países do Norte sem nunca os acompanhar nos rendimentos, crescimento, na produtividade e, acima de tudo, na qualidade da coisa pública.
Pagamos impostos altos. Sim, bem sei que 46% dos agregados não pagam imposto sobre os seus rendimentos. Vergonha houvesse e o facto de quase 2,4 milhões de agregados (!) não ganharem o suficiente para pagar impostos, já seria tema suficiente para acelerar esta discussão.
Pagamos impostos altos e depois é o que se vê: a espuma dos dias, repleta apenas de maus e péssimos exemplos da gestão dos dinheiros públicos, da corrupção, do amiguismo e do compadrio. Os ingredientes, os mesmos. A receita, a mesma. Mas Governo após Governo, num último gesto de insanidade em que se esperam resultados diferentes, a fazer o cocktail de sempre: aumento dos salários da função pública, aumento do salário mínimo nacional, promoção de grandes obras públicas, entre outros.
E eis que não, a audácia desta gente.
As negociações do Orçamento do Estado trazem uma apetecível novidade de uma aparente baixa de impostos. Todos os meses, você e eu, pagamos uma retenção na fonte de IRS, uma espécie de estimativa de imposto que, de acordo com o nosso vencimento bruto, o nosso empregador deve entregar diretamente ao Estado. Aquela componente que eu, você, a minha filha (e talvez a sua), ninguém vê.
Este dinheiro é, quase sempre, superior àquilo que devíamos, efetivamente, pagar. Afinal, há um conjunto de deduções e benefícios que nos baixam o rendimento tributável, esse sim, fundamental para o correto cálculo de imposto a pagar.
Pois claro que o Estado prefere sempre ficar a dever do que a haver; basta ver como gere as suas dívidas versus como gere as nossas, quando nos esquecemos de pagar uma taxinha que seja.
Pois bem, aprovou-se agora uma medida, ainda a ser definida, que baixará as taxas de retenção do IRS. Sendo que estas taxas são divulgadas a cada Janeiro, 2021 trará “impostos mais baixos” para muitos portugueses, num ano em que há dois momentos eleitorais, incluindo umas autárquicas que, convenientemente, podem contar com até 600 novas freguesias.
As pessoas terão mais dinheiro no bolso, artificialmente. No fim do dia, em 2022, quando acertarem contas com o fisco (o querido modelo 3), vão perceber que o cheque do reembolso de IRS será mais curto (para quem recebe) ou maior (para quem paga). E quando a neblina passar, verão que não pagaram nem mais, nem menos um euro do que deviam. Quem se riu, novamente, foi o Estado, que tem aqui mais uma medida hábil para melhor gerir a sua caixa.
Queria mesmo acreditar que esta ilusória baixa de impostos não será usada como arma de arremesso eleitoral ou, pior ainda, como alternativa de argumentário num debate sobre uma real redução de impostos. Queria mesmo.
Mas a audácia desta gente…
João Romão tem 31 anos, vive na Amadora e nos últimos anos tem desenvolvido empresas e produtos na área digital. Em 2019, fez parte da equipa que lançou o movimento 100 Oportunidades, um grupo de 100 jovens escolhidos pelo seu percurso, recomendados por especialistas nas suas áreas, independentemente das suas afiliações ou ideologias, com um foco absoluto na sua capacidade de acrescentar conteúdo e conhecimento, de enriquecer o espaço público.
O Observador associa-se ao Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.