Há uns meses, escrevi aqui que o principal legado que Jorge Sampaio nos deixou foram os dois piores primeiros-ministros na história da nossa democracia: Pedro Santana Lopes e José Sócrates. Foram as suas indecisões que levaram a esse resultado. Confesso que fico assustado ao ver tanta gente que antes estava ligada a Pedro Passos Coelho apoiar Pedro Santana Lopes na actual contenda pela liderança do PSD. Parece que a entourage do PSD faz questão de não aprender com a história. Que me tenha dado conta, Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura no Governo de Passos Coelho, foi o último a chegar-se à frente, declarando, há três dias, o seu apoio a Santana Lopes.

Vale a pena ler o artigo. Houve dois aspectos que me chamaram mais a atenção. O primeiro é a total incapacidade de se olhar ao espelho. O segundo é a sua capacidade formular teses desmentidas pelos factos que o próprio enuncia.

Comecemos pelo primeiro. Barreto Xavier reconhece que os partidos políticos estão bastante desprestigiados, apontando para «exemplos de má condução do interesse público» e «de mistura do interesse público com interesses privados». Diz mesmo que «os partidos de governo procuram mais acomodar interesses que promover, efetivamente, estratégias políticas de longo prazo» e que «é na organização de interesses que os partidos obtêm os votos de determinadas classes, corporações, grupos».

Eu fico pasmado com tamanha lata. É Barreto Xavier o responsável pela actual redacção da “Lei da Cópia Privada”. Foi ele que enquanto secretário de Estado lançou um imposto especial sobre diversos produtos, como telemóveis ou tablets, para entregar essas verbas a entidades como a Sociedade Portuguesa de Autores ou a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, que depois as distribuirão pelos seus associados. Trata-se de transferir dinheiro dos contribuintes para lóbis privados sem nada que o justifique. E faço minhas as palavras de André Azevedo Alves que, na altura, escreveu que «a lei constitui uma ilustração perfeita da teoria da escolha pública, com um grupo de pressão pequeno, organizado e politicamente influente a garantir por via do processo político uma renda imposta em prejuízo do conjunto da sociedade». Que uma pessoa que aproveitou a sua passagem pelo Governo para promover interesses privados ligados à sua actividade profissional anterior venha dizer que um dos problemas dos partidos de poder é sacrificarem o interesse público aos interesses privados é de uma desfaçatez que merece uma gargalhada. Mas os militantes do PSD ficam avisados. Barreto Xavier considera que, e cito novamente, «Pedro Santana Lopes está mais preparado para perceber e defender o papel da Cultura nas políticas públicas».

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Mas, no texto, o que mais me surpreendeu foi mesmo a incapacidade para alinhavar um argumento lógico, ao mesmo tempo que se inventam costumes constitucionais: «Se antes, o PSD, “deixou” o PS governar em minoria (como aconteceu no primeiro governo de Guterres ou no segundo de Sócrates) e o PS nunca “deixou” o PSD governar em minoria (mesmo no primeiro Governo de Cavaco Silva isso só aconteceu graças à abstenção do PRD), o atual PS decidiu quebrar esse costume constitucional.»

Como é que na mesma frase em que se diz que, quando o PSD se apresentou em minoria para governar (1985), o PS votou contra aquele programa de governo, se diz também que o PS quebrou, em 2015, o “costume constitucional” de deixar o partido mais votado governar em minoria?!

YPara começar, é difícil de conceber que alguém, com base num único exemplo, fale em “costume”. Mais incrível ainda é que o exemplo dado contraria a tese enunciada. Ou seja, antes de 2015, na única oportunidade que houve em 40 anos de democracia para testar esta novel teoria constitucional, os partidos na Assembleia da República trataram de a desmentir. E, na verdade, o PS fez mais do que votar a favor de uma moção de rejeição do programa de governo: o PS foi o proponente dessa moção, que contou com a abstenção do CDS e do PRD. E, já agora, também é mentira que o PSD sempre tenha deixado o PS governar em minoria. Em 1999, o PSD apresentou uma moção de rejeição ao programa de governo de Guterres. Digamos que viabilizar governos minoritários dos outros partidos é um costume com pouca tradição.

Mas, se é para inventar costumes constitucionais, eu tenho um na cartola, que tem a vantagem de ser compatível com os factos. Aí vai: é o costume constitucional que decreta que o Primeiro-Ministro que sai das eleições é o líder do partido mais votado do bloco ideológico vencedor. Explico melhor: sempre que os partidos de direita elegem mais deputados que os partidos de esquerda, o primeiro-ministro é de direita, sempre que acontece o contrário, o primeiro-ministro é de esquerda. Em 2015, foi o que aconteceu. Em 2011 também. Em 1985, idem: PSD e CDS tinham mais votos e mais deputados do que PS e APU (coligação que incluía o PCP); o PRD, na altura, era visto como um partido do centro, tendo até sido convidado a formar governo com o PSD.

Na verdade, não é invenção minha. À direita sempre houve quem percebesse bem este “costume constitucional”. Foi Paulo Portas que, em 2011, perante a hipótese de o PS ser o partido mais votado, mas o PSD e o CDS terem maioria na assembleia, disse que era uma obrigação do PSD e do CDS formarem governo. Chegou, inclusivamente, a explicar que bastava um partido ter 23.5% e outro 23%, como se pode ouver no vídeo.

Ou seja, e voltando à vaca fria, o governo que saiu das eleições de 2015 é um governo não só legítimo do ponto de vista constitucional e político como até está de acordo com a nossa tradição. Que tanta gente tenha sido apanhada de surpresa, como foi o meu caso, é apenas um atestado à nossa incapacidade.

Quem desde o início leu esta realidade muito bem foi Paulo Portas, que percebeu que estávamos perante um novo ciclo que exigia novos protagonistas, especialmente depois de uma das piores votações de sempre da direita portuguesa. O CDS só ganhou em ter compreendido isso cedo.

Já o PSD ficou com os ponteiros do relógio parados em 2015. Foi preciso uma derrota colossal nas eleições autárquicas para voltarem a dar corda ao relógio. O problema é que, se elegem Santana Lopes, estarão a dar corda a um relógio que vai andar ao contrário, contra o sentido do tempo.

Bem sei que os meus leitores aqui no Observador não gostam que eu lhes fale nestas coisas, mas hoje nem se podem queixar muito. Para fundamentar as minhas opiniões, citei André Azevedo Alves, um líder intelectual da direita portuguesa, e Paulo Portas, o mais carismático líder do CDS. Na verdade, o que distingue estas pessoas que citei? A sua rara inteligência. É que, como diria Cavaco Silva, e aí vai mais uma citação de outro carismático líder da direita portuguesa, «pessoas inteligentes, com a mesma informação, chegam às mesmas conclusões.»