Quando se anunciou a campanha de vacinação, liderada por um daqueles matraquilhos que o PS vai buscar às profundezas, apostei com um interlocutor indefinido que a coisa correria mal. Nas primeiras semanas, “correr mal” foi eufemismo: as vacinas não chegavam, as que chegavam eram imediatamente açambarcadas por caciques locais ou aparentados, os grupos prioritários mudavam a cada dia ou a cada pressão do mais recente grupo prioritário, etc. A fim de me estragar a aposta, o dr. Costa despachou o matraquilho e, uma vez sem exemplo, recrutou um sujeito exterior ao partido. E, até porque piorar seria impossível, a coisa melhorou.

O que aconteceu? Nada de especial. Ao invés do antecessor, que aparentemente coordenava as operações a partir de casa, através de Zoom e à frente de um retrato de “Che” Guevara, o novo responsável optou por trabalhar. O vice-almirante Gouveia e Melo imitou o que acontecia nos países em que o objectivo da campanha de vacinação era, imagine-se, vacinar o povo e não alimentar propaganda. Apesar de se manter típicas excentricidades de terceiro mundo, como a de privilegiar profissões em detrimento da idade e da situação clínica, montou-se enfim a logística necessária – e o nosso atávico pavor à exclusão encarregou-se do resto. Em questão de meses, alcançou-se e de seguida superou-se a média europeia na matéria. Mérito do vice-almirante? Com certeza, e só na medida em que é meritório cumprir a função que se aceita desempenhar. Por azar, como estamos em Portugal, não houve maneira de escapar à hipérbole e ao espectáculo, quer na veneração do homem, quer no comportamento do homem.

Começo pela veneração. Não falo da urgência em atropelar a hierarquia para subir o homem a um posto de chefia, um expediente matarruano habitual no governo. Nem falo da condecoração atribuída pelo prof. Marcelo que, havendo oportunidade, pendura uma medalha no quarto classificado do Torneio Ibérico de Pesca à Linha. Falo do dia em que se encerrou a famosa “task force” e em que uma extraordinária quantidade de criaturas achou indispensável exibir nas “redes sociais” um comovido agradecimento ao vice-almirante. À primeira vista, parecia que o militar organizara uma viagem tripulada a Marte, e não a supervisão de uma rede de tendas entre Monção e a Fuzeta, onde enfermeiros cometiam injecções. Há quem ache o vice-almirante o principal motivo de orgulho das Forças Armadas nas últimas décadas (a competição não é feroz). Há quem o garanta invencível nas próximas eleições presidenciais (idem). E há quem o eleve ao estatuto de maior vulto da História Contemporânea, ideal para organizar tudo e liderar tudo (e há quem, principalmente à esquerda, procure moderar tais delírios de modo a impedir a criação de um potencial, e imprevisível, adversário político).

Antes que proponham enfiá-lo em vida no Panteão, cabe perguntar o que leva tantos cidadãos a tamanha devoção por um cidadão que apenas mostrou competência. Proponho três respostas, que afinal são a mesma: 1) se calhar esses cidadãos sabem-se incompetentes, logo ficam assombrados perante os que não o são; 2) se calhar esses cidadãos são os que julgam louvável a actuação das dras. Martinha e Gracinha, dois cataclismos que por comparação fazem do vice-almirante o general Eisenhower; 3) se calhar os padrões de exigência desses cidadãos para com o próximo são, por experiência própria ou pela longa sujeição a bitolas socialistas, a dar para o baixo. Em suma, o vice-almirante passa por óptimo por se revelar acima da média num país em que a média é péssima.

Infelizmente, fora da logística das vacinas o vice-almirante não se destacou da maioria dos seus compatriotas. Pelo contrário. Mal percebeu o culto que suscitava, adoptou o papel de guia espiritual. Enquanto jurava que não queria protagonismo, concedeu entrevistas, palestras e depoimentos a uma cadência quase diária, sempre empenhado em fingir modéstia e de facto a escorrer soberba. De acordo com o vice-almirante, o vice-almirante é fantástico no que toca às missões que assume, à autoridade que exerce e – esperem lá – às mulheres, com as quais confessa ter tido “algum sucesso”. Esta é a parte ligeira do discurso. A parte grave é o vice-almirante exceder as tarefas que lhe confiaram e desatar a emitir palpites acerca das vacinas e do direito das pessoas a recusá-las. Teria sido útil ensinarem ao senhor que uma sociedade civil não se confunde com a tropa: a omnipresença do uniforme camuflado também sugere a confusão.

Porém, confusa é igualmente a adoração colectiva. Seria engraçado apurar quantos devotos do vice-almirante pertencem àquela gente que, cheiinha de medo e virtude, continua a usar máscara na cara e gosma nas mãos. Essa gente idolatra a figura que lhes proporcionou um serviço de cujos benefícios duvidam e cuja eficácia menosprezam. No fundo, canonizaram o vice-almirante sem saber porquê, e esta é das homenagens mais insultuosas que se pode prestar a alguém.

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