A teoria que defende que se dê poder ao ministro das Finanças foi aplicada como nunca em Portugal nos últimos quatro anos. Vamos ver se assim continuará. Mas sem a disciplina imposta pelos credores representados pela troika, António Costa conseguiu dar a Mário Centeno um poder que explica em grande parte – a par com a recuperação da economia e algumas alterações de regras fiscais – o sucesso que foi obtido. E que nos faz chegar a 2020 com a perspectiva histórica de um excedente orçamental.
O problema que temos entre mãos é que este sucesso tem reduzidas garantias de ser duradouro. De facto, neste momento não estamos a transferir impostos para as gerações futuras, como diz Centeno, mas estamos a colocar um enorme peso nas gerações presentes, por via da combinação entre receita e despesa escolhida pelo Governo para obter a redução do desequilíbrio orçamental.
Existiam outras alternativas. Mas a escolha que o Governo fez, para colocar o problema como o fazem os economistas, foi reduzir o défice sujeito ao objectivo de maximizar a conquista de eleitorado. O resultado é o que tem estado à vista: orientar a subida da despesa para os funcionários públicos e pensionistas e adoptar medidas no domínio dos impostos que carregam na tributação indirecta – aquela que não percebemos que pagamos – e nas regras de cálculo da matéria colectável em sede de impostos directos, como o IRS, ou mesmo das contribuições para a segurança social. Sem que, no caso dos impostos e contribuições, se consiga, em geral, perceber se se vai pagar mais ou não.
Tendo como referência a “função objectivo” de um político, que é conquistar e manter o poder, é sem dúvida uma política interessante e potencialmente muito eficaz (potencialmente porque, apesar disto, o PS não conseguiu a maioria absoluta). Do ponto de vista dos objectivos de política económica já não se pode dizer o mesmo, que estas tenham sido as melhores escolhas. O que já sabemos é que se sacrificou o investimento e as despesas de funcionamento do Estado. E que o nosso sistema fiscal pode ter-se tornado mais injusto por via do aumento do peso da tributação indirecta por um lado, e da tributação directa sobre aqueles que não têm um emprego fixo.
Os efeitos dos poderes de impedir despesa, que o ministro das Finanças passou a ter, – que vão muito para além das cativações e são mais visíveis nos decretos de execução orçamental – são mais difíceis de medir. Mas há pelo menos uma consequência: desresponsabilizou ainda mais os gestores dos serviços e empresas públicas e impediu-os de tomar as decisões económica e financeiramente mais eficientes. Este poder discricionário, de impedir despesa, reforça-se aliás desde logo na proposta de Orçamento do Estado para 2020 como o sublinha a UTAO (ver aqui na página 5, ponto 35): ainda antes das cativações, Mário Centeno controla 1.805 milhões de euros da proposta de Orçamento para 2020. Destes, a maioria (960 milhões) pertencem a uma rubrica chamada “dotação centralizada” nas Finanças que regista um aumento de 50% face a 2019 e que, de acordo com a UTAO, “é contrária ao princípio de especificação da despesa previsto na Lei de Enquadramento Orçamental”.
Um dos aspectos interessantes desta gestão orçamental é o que diz respeito aos impostos. A carga fiscal tem sido o centro do debate que opõe o PS e o Governo aos partidos à sua direita. O PSD, CDS e Iniciativa Liberal acusam o Governo de ter aumentado a carga fiscal. O Governo obviamente que rejeita essa acusação. O indicador alvo de discórdia é o rácio entre as receitas fiscais e contributivas e o PIB.
Os argumentos usados pelo Governo são variados: o perfil de crescimento – via consumo, com o crescente peso do turismo explicam o crescimento da receita dos impostos indirectos como o IVA; o aumento do emprego explica o aumento da receita de IRS e das contribuições e, finalmente, um último argumento, é que não se aumentaram taxas de impostos.
O argumento mais forte é o do perfil de crescimento. Quando a economia cresce fundamentalmente pelo motor das exportações isso prejudica a receita, o que não acontece quando a dinâmica vem do consumo. As outras justificações já se podem considerar meias verdades ou verdades incompletas.
Há um primeiro aspecto que está relacionado com a produtividade que nos deveria preocupar. Se o rácio entre impostos e contribuições e o PIB aumentou ou até se se manteve por via do aumento do emprego, tal significa que a criação de novos empregos não gerou produção suficiente para, sem qualquer alteração dos impostos, esse rácio diminuir.
Um segundo aspecto está relacionado com o argumento do Governo de que não se pode concluir que a carga fiscal aumentou porque não houve alteração de taxas. O problema é que o nosso regime fiscal e contributivo tem imensos pormenores que, alterados, podem aumentar o imposto ou a contribuição devida. E essas regras têm mudado quer no IRS como na Segurança Social.
Em 2018 mudaram as regras de IRS para os recibos verdes que acabaram com o automatismo de considerar que 25% do valor recebido correspondia a despesas, estando sujeito a imposto os restantes 75%. Desde esse ano, os recibos verdes com rendimentos superiores a 27.360 anuais passaram a poder deduzir o mínimo de existência mas, para chegarem aos 25%, têm de o justificar com despesas enquadradas na sua actividade (ver por exemplo aqui e aqui). Essa mudança das regras agravou a carga fiscal? Realmente ainda não sabemos. Apenas sabemos que, na altura, os fiscalistas disseram que sim, que iria agravar, e que o Tribunal de Contas explica a boa surpresa na receita em 2018 também com “medidas fiscais” (ver na página 41). É um tema que merece investigação mais aprofundada.
Em 2019 mudaram as regras das contribuições para a segurança social também para os recibos verdes. Mais uma vez, a alteração das regras é feita de tal maneira que não se consegue concluir facilmente se os trabalhadores por conta própria passam a pagar mais ou menos segurança social (ver aqui). A declaração passa a ser trimestral – ligando o rendimento à contribuição – mas a taxa baixa, por exemplo.
Estes dois exemplos mostram-nos como é possível alterar a carga fiscal com mudanças nas regras, que são feitas de forma que se torna impossível concluir, à partida, se se traduz num aumento ou não dos impostos e contribuições pagos especialmente pelos grupos de trabalhadores menos organizados sindicalmente. É, de facto, politicamente muito inteligente. E também politicamente viável, porque a oposição ao Governo pouco se parece importar com isso.
O problema desta estratégia, que apoia a redução do desequilíbrio orçamental na receita e numa gestão férrea da despesa de funcionamento e de investimento do Estado, é que está dependente da conjuntura – no caso dos impostos – e tem como limite os sinais exteriores de colapso dos serviços públicos. Estes, o colapso dos serviços, começaram a revelar-se no sector da saúde quase quatro anos depois. Uma crise que nos apareça pela frente revelará até que ponto o controlo orçamental via receita é uma ilusão.
Há pelo menos uma via de combater estas ilusões e, principalmente e mais importante, evitar que o futuro nos traga más notícias. Essa via passa por um Parlamento mais exigente em matéria de informação sobre a proposta de Orçamento do Estado. As contas públicas transformaram-se num longo documento com excesso de informação, a maioria dela irrelevante, que nos impede de separar o essencial do acessório. O debate sobre a carga fiscal mostra bem até que ponto é opaca a informação da proposta de Orçamento do Estado.