A história podia contar-se em poucas palavras e parecer simples. Mas não é. Esconde algo de sinistro, arbitrário e profundamente iníquo.

Apesar de ser um caso que ocorre no Porto, multiplica-se sob diversas formas por muitos bairros sociais do país e especialmente em Lisboa.

Em 2012, uma moradora do Bairro do Lagarteiro, um bairro social do Porto, foi condenada por tráfico de droga a nove anos de prisão. Quando foi detida, a casa onde vivia naquele bairro social, ficou vazia. E assim permaneceu durante vários anos, até finais de 2018, quando a Câmara Municipal do Porto decidiu executar o seu despejo.

Como reportou o Observador no passado dia 21 de fevereiro, assistiu-se de seguida a um curioso jogo, em que se descartam responsabilidades sobre a autoria dessa decisão. De um lado, Manuel Pizarro, do Partido Socialista, que teve o pelouro da habitação entre 2014 e 2017. Do outro, Fernando Paulo, o atual vereador da habitação eleito nas listas de Rui Moreira. Nenhum assume a decisão que afinal já se concretizou: a senhora foi despejada.

Pelo meio, um conjunto de individualidades e de notáveis faz uma carta aberta a Rui Moreira defendendo a moradora, onde entre outras coisas afirmam “(…) se tinha o direito à habitação antes, deveria continuar a tê-lo (…)”.

E há ainda quem escreva que “(…) vivendo atrás das grades sempre na angústia e no desespero de perder o teto, numa situação de nítida desvantagem e de desfavorecimento social por estar privada de liberdade para escrever, reunir, telefonar e berrar alto sobre esta perseguição, teve ao longo destes anos a compreensão e sensibilidade do anterior vereador da Habitação, o dr. Manuel Pizarro (…).”. É comovente, mas confuso. Como se poderia “proteger” ou “favorecer” uma pessoa condenada a nove anos por tráfico de droga e encarcerada numa prisão? Comutando-lhe a pena? Guardando-lhe uma casa que ficaria vazia, sabe-se lá por quantos anos?

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Mas o mais rocambolesco neste processo é constatar que o vereador Manuel Pizarro que reconhece que a lei determina o despejo quando as casas estão desocupadas há mais de dois anos, vem agora dizer que nada obriga a câmara a executar esse despejo. Por outras palavras, a lei existe, mas segundo ele só se aplica quando convém.

Surpreendentemente, ficámos também a saber que durante o seu mandato como vereador da habitação entre 2014 e 2017, Manuel Pizarro despejou mais de 150 famílias dos bairros municipais. Certamente, a lei e os regulamentos facultaram-lhe motivos ponderosos para o fazer.

Tão ponderosos, como os que agora utiliza para acusar o seu sucessor de “procedimento desumano”, “despejo injusto” e “insensibilidade”, retórica já habitual nestas ocasiões, mas que disfarça algo particularmente grave e que não se pode escamotear.

A cidade do Porto, à semelhança de Lisboa tem um parque de habitação social com dimensão muito expressiva. No Porto, este parque habitacional aloja cerca de 20% da população da cidade. Ou seja, os bairros sociais do Porto têm um grande peso eleitoral.

A caça ao voto nestes bairros é assim um exercício onde se mistura uma enorme “generosidade” para com os seus moradores a quem tudo se oferece, com uma dissimulação onde os despejos fazem parte do quotidiano, mas nunca são assumidos. Quando ocorrem, são sempre obra de outros. Este é o padrão que expõe a hipocrisia de quem determinou o despejo de uma casa que estava vazia e agora empurra a responsabilidade para quem teve que o executar.

O caricato é que esta casa esteve “presa” e vazia tantos anos, quantos os que a sua anterior moradora esteve encarcerada em Santa Cruz do Bispo. Mas este, não é caso único. Infelizmente, na habitação social em Portugal, situações destas fazem parte de um quotidiano ditado pela cobardia política dos responsáveis que aplicam a lei conforme as conveniências. Ou porque se aproximam atos eleitorais. Ou em função de algumas manifestações. Ou até, em resultado da pressão de umas quantas notícias ditadas por umas cartas abertas de algumas individualidades.

No Porto existem centenas de famílias nas listas de espera para aceder a uma habitação social. Qual é a dificuldade em assumir que é inaceitável a existência de casas vazias durante tantos anos como sucedeu nesta situação?

O que escandaliza é que se tenha agido com seis anos de atraso e no final ainda nos apresentem uma procissão de notáveis que alimentam uma guerrilha partidária visando simplesmente a caça ao voto.

Obviamente, entrámos em ano de eleições!

Convém recordar que o vereador Manuel Pizarro, tal como alguns dos subscritores da carta aberta a Rui Moreira, são os responsáveis e até autores da Lei n.º 32/2016, de 24 de agosto, que estabelece o regime de arrendamento apoiado e que contém as normas que ditaram o despejo desta moradora. Tentem imaginar a gritaria sobre esta “lei dos despejos”, se isto ocorresse com o anterior governo.

Agora, acanham-se com a lei que fizeram e quando são confrontados com a sua aplicação prática, encabeçam movimentos e manifestações em defesa dos “injustiçados”.

Ao menos, poderiam ter a frontalidade do PCP que é um dos autores desta lei. Decorridos 18 meses e quando começaram a ser incomodados com as suas “injustiças” anunciaram que a queriam alterar. Afinal, fazer leis, ter que as aplicar e ficar com as responsabilidades dos seus resultados, perturba as clientelas eleitorais a quem se vende a ideia que só têm direitos e não existem obrigações. E quando se promete que as rendas não subirão e serão sempre baixinhas, é uma chatice passar por charlatão quando acontece o contrário… que o diga o Bloco de Esquerda, no Porto e em Guimarães.

Em Lisboa a situação é mais grave, muito mais grave.

Em junho do ano passado foi noticiado que a Câmara não sabe quantas das suas casas estão ocupadas ilegalmente. Parece que serão algumas centenas.

Recentemente, em reuniões de técnicos da câmara com as juntas de freguesia, os primeiros solicitam apoio para identificar casas propriedade do município que estejam vazias. Neste caso, parece que o número excede um milhar.

Entretanto, a câmara divulga números preocupantes sobre famílias que pedem casa. Mas a própria câmara não sabe, de entre as suas casas que estão vazias, abandonadas ou ocupadas ilegalmente, quantas dispõe para satisfazer as necessidades de alojamento dessas famílias.

O valor das rendas em dívida nos bairros sociais municipais não pára de aumentar e já ultrapassa os 40 milhões de euros, sendo evidente que a câmara não quer agir e impor a sua autoridade. Bastaria confrontar os que não pagam a renda com uma opção muito simples: ou cumprem com as suas obrigações ou terão que enfrentar o despejo. Importa recordar que estas rendas são rendas sociais, calculadas de acordo com os rendimentos destas famílias e que em média rondam os 70 euros.

Para cúmulo, sabe-se agora que em vez de agirem, meteram na gaveta muitas dezenas de processos que permitiriam atuar judicialmente para cobrar as rendas em dívida e recuperar as casas ilegalmente ocupadas. Nem sequer se preocupam em assegurar um tratamento de equidade face aos lisboetas que cumprem com as suas obrigações.

O descontrolo e a bandalheira na gestão dos bairros sociais municipais de Lisboa atingiram proporções inimagináveis.

À semelhança do que faz Manuel Pizarro no Porto, Fernando Medina passeia-se em Lisboa, por reuniões públicas da câmara como a que ocorreu no passado dia 6 de março, comentando a gestão do património público por parte do anterior governo e desresponsabilizando-se dos problemas dos velhos bairros do ex-SAAL (programa de construção de habitação social que existiu em 1974/76 e cuja execução se estendeu até 1982).

Omite que estes bairros estão implantados em terrenos que são propriedade do Município de Lisboa e que nunca foram legalizados. São, assim, uma espécie de bairros clandestinos, construídos em terrenos municipais e com o consentimento da própria câmara.

Talvez tenha chegado o momento de convidar o vereador Manuel Salgado a regressar aos bancos da escola para receber umas aulas sobre loteamentos e licenciamento, de modo a que este explique a Fernando Medina que os problemas destes velhos bairros de Lisboa só se resolvem no dia em que o dono dos terrenos, ou seja o Município de Lisboa e neste caso o próprio Fernando Medina, mande elaborar e faça aprovar os respetivos loteamentos.

Também convinha que ajudassem a sra. presidente da Assembleia Municipal de Lisboa a não fazer certas figuras nos jornais quando defende a criação de uma Autoridade Nacional para a Habitação que entra na casa dos cidadãos para verificar se as regras estão a ser cumpridas, ao mesmo tempo que na sua cidade, a sua câmara municipal consente na total rebaldaria e desordem no bairro Portugal Novo nas Olaias, onde se pode testemunhar todo o tipo de obras clandestinas, que até colocam em risco a segurança de quem lá habita.

Dizem-nos que vivemos num Estado de direito. Mas a realidade e a caça ao voto mostra-nos que enquanto Manuel Pizarro no Porto acha que a lei se aplica quando convém e assistimos a este episódio ridículo de uma casa que esteve “presa” mais de seis anos, Fernando Medina em Lisboa segue uma governação “desprendida”, onde não há lei que valha nos bairros sociais da cidade e que todos andamos a pagar.

O melhor epítome desta política está na célebre metáfora de George Orwell no Triunfo dos Porcos: “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”.

Arquitecto, presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana de 2012 a 2017