1 Surgiu o debate sobre se as medidas do pacote “Mais Habitação” do Governo PS eram “comunistas” e introduziam novo ataque revolucionário contra a propriedade. Choveram respostas de que “não, senhor”, que a propriedade privada não é sacrossanta e intangível, que importa ter em conta a “função social da propriedade”, que a “função social” é um princípio da doutrina social da Igreja e da “social-democracia” (nada tendo de “comunista”) e que tudo isto já consta de leis antigas em Portugal e, mais recentes, com assinaturas de Cavaco Silva, Passos Coelho e Paulo Portas. Aqui, citaram-se o Regime Geral de Urbanização e Edificação e a Lei de Bases da Política de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo. Foram mesmo convocados o Polígrafo e a Prova dos Factos para passarem certidão oficial de que, afinal, “é tudo normal”, “não há problema”, “nada de novo”. Esta estratégia argumentativa, porém, corresponde ao velho truque “com a verdade me enganas”.

É evidente que a propriedade privada não é ilimitada, estando sujeita a limites ou imperativos que constam das leis. Há regimes de cultivo agrícola ou florestal, sujeitos a obrigações ou proibições por razões ambientais, de protecção de solos, etc. Há propriedades sujeitas a onerações de direito privado ou de direito público, como servidões de passagem, ou de vistas, ou outras, em benefício de vizinhos ou do público em geral. Há inibições quanto a construções urbanas: ninguém pode construir um bairro numa propriedade rústica. Na propriedade urbana, também há limites da mais diversa ordem: ninguém pode construir no seu terreno uma torre de 30 andares, porque lhe apetece; nem pode demolir imóveis que tenham algum tipo de classificação; nem pode comprar um quarteirão em zona residencial e aí instalar um parque de diversões, sem licenciamentos que o permitam. E há, é claro, os regimes de expropriação e requisição por utilidade pública. É sabido. São princípios e regras, que existem desde tempos muito antigos, alguns desde o Direito Romano, variáveis com as diferentes épocas e seus quadros económico-sociais. A propriedade é limitada pelo regime de gestão dos solos, pelas regras gerais do regime de edificações e de governo dos espaços rústicos e urbanos ou por, em determinados locais, se atravessarem imperativos de utilidade pública. Se quisermos, podemos enquadrar isto no conceito de função social da propriedade de que eu, personalista cristão, também sou defensor desde que me conheço.

A primeira vez que ouvi falar da “função social da propriedade” foi, nos meus 14 a 16 anos, nos 6.º e 7.º anos do liceu, na disciplina OPAN – Organização Política e Administrativa da Nação. Vinha aí bastante desenvolvida, com suporte nas encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. O facto de várias vozes do PS terem agora avançado por aí significa terem bebido de repente nas mesmas fontes do Estado Novo, o que não sei se me tranquiliza, se me inquieta. Há quem aponte mesmo que o PS quer escrever na Constituição essa “função social”, o que pode constituir grande ameaça, possível fonte ideológica dos maiores excessos e abusos.

A função social da propriedade não é uma regra jurídica, um imperativo normativo, mas uma inspiração moral, um fundamento filosófico que tanto pode ser fundamento de normas legais, como do comportamento de cada um em sociedade. No direito estará sempre sujeita, entre outros, ao princípio da proporcionalidade, sob pena de ser tão intrusiva e invasiva que destrói a propriedade.

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2 A qualificação do pacote governamental socialista, como “social-democrata” ou “comunista”, não aquece, nem arrefece. É ilusão de palavreado. Já ouvimos Catarina Martins e Mariana Mortágua reclamarem-se de social-democratas. Também André Ventura é seguramente social-democrata, com brevet tirado no PSD, onde militou longamente. Com Alexandra Leitão, no “Princípio da Incerteza”, a convocar a social-democracia para justificar o pacote, temos o quase pleno parlamentar. Todo o mundo é social-democrata. Até Lenine – sim, o Vladimir Ilitch Lenine, ele mesmo – foi dirigente do Partido Operário Social-Democrata Russo. Por isso, esta discussão fez-me recuar a um cartoon humorístico, publicado em Fevereiro de 1976, no n.º 1 da revista Democracia 76 (então o órgão oficial do CDS, que eu dirigia), onde se brincava com um silogismo:  se o socialismo é o caminho para o comunismo (como dizia o PCP) e a social-democracia era o caminho para o socialismo (como dizia o PSD), então a social-democracia era o caminho para o comunismo.

Publicado em “Democracia 76”, órgão oficial do CDS, n.º 1, Fevereiro 1976

Esses rótulos de pouco interessam. O que interessa são os factos reais e os efeitos reais que provoquem. E, como é evidente, a perspectiva é muito diferente se for de um não-proprietário ou de um proprietário. Se estes, sejam nacionais ou estrangeiros, sentirem que é um esbulho, é o espírito do esbulho que se vai transmitir à economia. E não vai parar na propriedade imobiliária directamente atacada. Terá efeitos gerais em todos os domínios não voláteis, mas estruturais, onde a titularidade de direitos privados, própria e exclusiva, é um elemento essencial de relacionamento e de funcionamento. Se o governo for visto e percebido como destruindo valores institucionais e a estabilidade das leis, danificará o princípio da confiança, porventura de forma fatal. E, se o mercado de arrendamento for arrasado, poucos anos depois de, finalmente, estar a reanimar, será muito difícil conseguir repô-lo a funcionar. Um mercado de arrendamento aberto e dinâmico é, não o esqueçamos, essencial para a mobilidade social, nomeadamente para as novas gerações.

3 Há dias, em conversa profissional, um interlocutor estrangeiro perguntava que outros investimentos o Governo tinha nacionalizado além da habitação. Não sei como é que a imprensa internacional, nomeadamente lida por investidores, apresentou aos leitores o pacote “Mais Habitação” que esteve em consulta pública desde Fevereiro. Nunca tinha visto as coisas assim, mas, depois de procurar explicar as coisas em pormenor, e ouvir o meu interlocutor a insistir – “Vê… vê…” –, tive de me render a esse ser um ângulo de abordagem. O pacote do Governo pode ser visto como um programa de nacionalização geral dos prédios devolutos, que ficam sujeitos a arrendamento compulsivo. É uma expropriação do usufruto, em que a indemnização é paga em prestações, através das rendas fixadas administrativamente.

Esta medida, de dirigismo extremo, não vem, aliás, sozinha. É acompanhada de fortes medidas de limitação das rendas, travando (nas condições que estavam previstas) o ingresso de muitos fogos no chamado NRAU, e fixando tecto muito apertado à renda que pode ser estabelecida aquando de novos arrendamentos. E há outras medidas que revelam falta de respeito pelo mercado, pelas legítimas expectativas e até por direitos adquiridos. O caso do alojamento local é o mais flagrante – o patinho feio do pacote –, sendo fustigado por leque variado de medidas hostis, desde as de natureza tributária a apertos administrativos diversos, não levando em conta a relevância do investimento feito na recuperação de património e o relevante serviço social e económico que estas unidades representam numa economia descentralizada e de capilaridade local. E é também, no caso das autorizações de residência para investimento (ARI), em que este tenha incidido em imóveis, incluindo de reabilitação urbana, só ser garantida a renovação do visto se os investidores aí residirem permanentemente ou os tenham arrendado por períodos de cinco anos ou mais. Em todos estes casos, não ocorreu ao governo que não é conforme ao Estado de direito alterar as regras do jogo a meio do jogo.

Comparar o arrendamento forçado de leis antigas ou recentes, para situações extremas ou excepcionais, com o regime do pacote governamental é comparar o incomparável. Uma coisa é a posse administrativa e o arrendamento imposto em quadro excepcional, outra coisa é agarrar esta ideia para a transformar num instrumento geral e corrente de uma política de habitação autoritária. Não existe, aqui, nenhuma casa em degradação ou estado de ruína a carecer de intervenção. Pelo contrário, quanto melhor cuidada, mais apetitosa. Há meses, ninguém percebeu Marina Gonçalves, então secretária de Estado, quando deu nas vistas, ao afirmar: “Toda a gente tem direito a viver nas zonas mais caras de Lisboa”. Agora, já ficámos a saber como se faz. É a adaptação da velha cançoneta das pombinhas: Lá vai uma, lá vão duas,/três casinhas a arrendar,/uma é minha, outra é tua,/outra é de quem a apanhar.”

 

4 Comparar os instrumentos de intervenção na propriedade já antigos nas leis com o pacote que o Governo propôs em Fevereiro é o mesmo que comparar uma pedra no sapato com um penedo de granito que nos cai em cima da cabeça. Ambos são pedra, mas nada a ver uma com o outro. Ou comparar a vizinha que, ao regar os vasos, me salpicou a varanda com o tsunami que varreu o meu bairro. Ambos são água, mas nada a ver. Os primeiros podem causar algum incómodo, mas todos sobrevivemos; os segundos arruinam e podem matar. Tudo vai do tamanho e do grau, isto é, da dose.

É sabido que direitos sociais, como o da habitação, para serem sustentáveis, dependem mais da economia do que dos governos. Se um governo lesar a economia, os benefícios que pensa estar a atribuir pela burocracia vão reverter em vastos e prolongados prejuízos, que vai custar muito reparar. Até por isso este pacote vem em péssima altura.

É pena que aconteça exactamente agora, quando precisamos tão vitalmente de crescimento económico, acima da média europeia e acima dos países que, no ranking europeu, estão imediatamente à nossa frente e imediatamente atrás de nós. Medidas socialistas que firam e afectem o princípio da confiança só irão atrasar-nos e até afundar-nos. E, se, de facto, formos ultrapassados pela Roménia em 2024, como se anuncia, isso fica como metáfora do que está a acontecer: eles a afastar-se de Ceausescu, nós a aproximar-nos.