As declarações de António Costa sobre o primeiro ministro holandês, Wopke Hoekstra, foram, para a maioria dos portugueses e também para grande parte da Europa, uma gigante lufada de ar fresco — a prova de que é possível bater o pé a instituições europeias, exigir maior unidade nos processos de tomada de decisão comum e, particularmente num momento como o atual, reclamar solidariedade europeia.

No passado domingo, 5 de abril, um texto de opinião vinha relembrar-nos da velha mas adorável lenga-lenga do despesismo do sul da Europa e da também maravilhosa analogia da cigarra e da formiga para caracterizar a suposta irresponsabilidade dos povos do sul; afinal o ministro Hoekstra tem razão e até nós próprios deveríamos ter vergonha da nossa “libertinagem” financeira. Confesso que já estava com saudades.

Esta discussão requer a explicitação de 3 pontos: primeiro, explicar a hipersimplificação de todos os processos históricos, económicos e políticos que levaram a Holanda a ser um país muito mais rico que Portugal em 2020; segundo, descotronstruir a ideia de que os países do sul são a vergonha da UE por serem beneficiários líquidos de Fundos de Coesão e mesmo assim não conseguirem convergir; e, por último, explicar que mesmo que esse fosse o caso, não seria razão para constantemente invocar narrativas de responsabilidade num momento em que urge a solidariedade acima da troca de galhardetes.

Convém lembrar, para o início da nossa história, que já em 1900 a riqueza por habitante na Holanda (em poderes de compra comparáveis) era já mais de 5 vezes maior do que em Portugal (na altura ainda “império colonial”). E, se por um lado, a Holanda se viu no centro de 2 guerras mundiais praticamente seguidas — implicando uma vasta destruição de capital físico e humano –, Portugal passou 40 anos sob uma ditadura nacionalista cuja principal doutrina económica residia numa política de substituição de importações e foco no mercado interno – como sabemos, uma política manifestamente incapaz de proporcionar crescimento económico significativo em pequenas economias com um mercado interno fraco. No pós guerra, a enorme destruição de capital produtivo um pouco por toda a Europa levou ao maior plano de resgate e reconstrução de sempre — o Plano Marshall — do qual a Holanda foi um dos maiores beneficiários: qualquer coisa como o equivalente a 14 mil milhões de euros, ou quase 1500€ (atuais) por pessoa. Solidariedade Norte Americana, portanto, foi essencial ao esforço de reconstrução, mais do que qualquer milagre económico. E enquanto a Holanda também beneficiou de uns subsequentes 70 anos de estabilidade política para crescer e se desenvolver como sociedade altamente industrializada e moderna, Portugal terminou a sua ditadura com um golpe militar do qual só conseguiu inteiramente recuperar após duas intervenções do FMI, à porta dos anos 90. O nosso processo de convergência para o resto da UE, do qual tanto se fala, começou com cerca de 40 anos de atraso para com o resto da Europa; e sem a vantagem da reconstrução total que foi essencial, a longo prazo, para a avassaladora maioria dos países destruídos na guerra (entre os quais Japão, Alemanha, Holanda, Bélgica e França).

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Depois vem o Euro e a discussão dos equilíbrios europeus – afinal, quem é que saiu a ganhar e a perder com a Europa? A narrativa liberal gosta de nos lembrar que somos beneficiários líquidos do dinheiro da UE, o que, só por si, levantaria a questão: porque é que a Alemanha teria interesse em juntar-se a um projeto em que só lhes são exigidos esforços? Como qualquer empreendimento político, é óbvio perceber que se a UE existe é porque existiu um determinado equilíbrio a priori que motivou interesse de todas as partes envolvidas. E basta estudar um pouco para perceber que esse é — ou seria — o caso, se as regras de jogo estivessem a ser cumpridas.

Se é verdade que o Euro começou por ser um projeto político, convém não esquecer que os benefícios de uma moeda artificialmente desvalorizada (em termos reais) pela presença de vários países com índices de preços baixos (nomeadamente Portugal e outros países do sul e do leste da europa) beneficia em larga medida a competitividade das exportações alemãs e de outros países virados para a exportação (como a Holanda). Competitividade essa que não seria possível com um Marco alemão apenas em circulação dentro da própria Alemanha. Se juntarmos a isto a postura do BCE, que serve como uma espécie de Bundesbank — atuando para controlar o ciclo económico Alemão (e dos países em redor, com ciclos semelhantes) e garantir a liquidez dos principais bancos comerciais alemães — ficamos com um projeto que, à partida, começa desequilibrado. O resultado foi o esperado — para países no mesmo estágio de desenvolvimento económico que a Alemanha (e com uma estrutura económica semelhante), o saldo da balança comercial ao longo das décadas do Euro foi aumentando e o PIB cresceu a ritmos saudáveis, mesmo em economias que não estão no manual do liberalismo, como França ou a própria Alemanha.

Pelo contrário, Portugal e vários outros países do sul tiveram muita dificuldade em suportar o elevadíssimo peso da moeda única, com subsequentes e permanentes dificuldades nas exportações (e portanto déficies sucessivos na balança comercial) que só ultimamente conseguem lentamente ser recuperados (talvez pelo já significativo fosse de salários entre norte e sul da europa).

Para o jogo ser equilibrado, convém, entre outras coisas, que a União reconheça que convergência entre países é útil e desejável (a nível económico existem vários efeitos documentados sobre como é uma mudança mutualmente benéfica). E, portanto, os países mais ricos devem, num espírito de união, canalizar parte dos seus rendimentos para financiar projetos viáveis, produtivos e úteis que possam ter efeitos a prazo na nossa economia.

Se realmente queremos uma União Europeia, é bom que ela nos dê provas da sua utilidade precisamente quando mais precisamos dela. E, nesse sentido, convém relembrar o senhor Wopke Hoekstra que não é o momento mais adequado para criticar a saúde das contas públicas espanholas no meio de uma pandemia que os espanhóis não conseguiram controlar.

Discutir Europa é assumir que qualquer análise, tal como esta, vai saltar etapas e fenómenos relevantes. Por isso é que qualquer simplificação grosseira que acabe em analogias baratas (e recicladas do passado) é isso mesmo: uma simplificação. Cabe a todos os estados-membro respeitar as regras de jogo que foram delineadas no início — só assim conseguimos manter os interesses equilibrados e, com isso, alinhar os incentivos que fazem com que a UE realmente exista. Ao contrário do que estivemos habituados durante muitos anos, a atitude de António Costa lembrou-nos que a Europa não é um lugar de submissão mas de negociação, e o que exigimos não é mendigagem, é só União.