Na primeira metade do século XX, Gilberto Freyre desenvolveu uma “quase-teoria” sobre e relação de Portugal com os trópicos. O “Lusotropicalismo”, como é denominado em vários livros – inicialmente em O mundo que o português criou, de 1940, e mais tardiamente em Integração portuguesa nos trópicos de 1958 e O luso e o trópico, de 1961 – é o embrião do qual nasceu a narrativa corrente da relação de Portugal com as suas ex-colónias.

O Lusotropicalismo é um modelo social que explica as diversas características que, segundo o sociólogo, distinguiram o processo de colonização de Portugal do dos demais impérios europeus. Para Gilberto Freyre, o processo colonial português distinguia-se pela empatia, proximidade e até afeição que os colonizadores portugueses demonstravam perante os indígenas. Este processo era, naturalmente, fruto da própria origem da “Portugalidade”, ou seja, dos contactos prolongados que os portugueses mantiveram com culturas distintas – entre celtas, romanos, judeus e mouros – e do efeito que isso teria tido numa espécie de multi-culturalidade indissociável de cada português.

Infelizmente para o sociólogo, o Estado Novo da primeira metade do século XXI estava largamente desinteressado em utilizar esta narrativa publicamente. Um dos mais importantes rostos da política colonial portuguesa no início da ditadura, Armindo Monteiro, era um ávido defensor da “mística imperial” e foi promotor da Carta Orgânica do Império Colonial Português, onde se podem ler (várias) passagens como a do Artigo 232º, segundo o qual “Todas as autoridades e colonos […] têm a obrigação de amparar e favorecer as iniciativas que se destinem a civilizar o indígena e aumentar o seu amor pela Pátria Portuguesa”. Portugal tinha, portanto, um “dever” de “civilizar” os indígenas, o que, naturalmente, impedia qualquer proximidade com o Lusotropicalismo de Freyre, segundo o qual existiria uma relação de igualdade entre colono e indígena.

Contudo, no final da Segunda Guerra Mundial e com a subsequente pressão para o desmantelamento dos impérios coloniais – que começava a notar-se mesmo entre os vencedores da guerra, nomeadamente a França e o império britânico – o Estado Novo precisava de uma narrativa eficiente para se descolar destes movimentos e continuar com um império colonial unificado. Assim, no início da segunda metade do século XX, Salazar pede a revogação do Ato Colonial e promove alterações na conceção colonial portuguesa. Nas palavras do próprio, “a constituição portuguesa define a nação portuguesa como um Estado unitário na complexidade dos territórios que a constituem e os povos que os habitam”. As colónias passam a “províncias ultramarinas”, o termo “Império Colonial Português” é lentamente removido da linguagem estatal e a narrativa oficial começa a focar-se numa versão agregadora da teoria de Freyre: Portugal não é apenas Portugal, mas sim o conjunto de país com províncias ultramarinas, de colonizadores com colonos, um país indissociável das suas partes, todas elas iguais entre si e todos os seus habitantes irmãos entre eles.

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É, hoje, mais do que óbvio, que o Lusotropicalismo estava condenado à partida: as forças políticas nunca permitiram que as colónias fossem mais do que um poço de recursos naturais explorados à custa do trabalho forçado dos locais; e qualquer indígena sabia, também, que havia um fosso intransponível que o separava da vida de qualquer português: barreiras no acesso à educação, a cuidados de saúde, à ocupação de cargos políticos e à própria autodeterminação.

Apesar do seu falhanço largamente prenunciado, a narrativa do Lusotropicalismo ecoa ainda com muito estrondo na sociedade portuguesa e, muitas vezes, impede-nos enquanto país de iniciar várias discussões públicas extremamente difíceis, mas absolutamente essenciais. Fomos educados a achar que a integração portuguesa das colónias foi um processo excecional quando comparada com os outros impérios coloniais europeus – que foi feita à base de respeito, pacifismo e até miscigenação; e muitos acrescentam que os povos locais agradeceram o nosso apoio enquanto colonos porque, claro, os próprios não se conseguiriam governar sozinhos.

A história, infelizmente, é outra. Portugal foi dos últimos países a descolonizar e fê-lo à custa de uma guerra imbecil em todos os sentidos, sem comparação com os principais ex-impérios coloniais europeus da altura. As colónias portuguesas, hoje todas elas independentes, nem sequer colhem os frutos do suposto “sucesso” da sua colonização: entre Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe estão alguns dos países mais pobres do mundo; quase todas as ex-colónias portuguesas são democracias disfuncionais, com um legado de instituições frágeis que impedem uma autogovernação eficaz e próspera. Inegavelmente, a responsabilidade é nossa.

As palavras de vários atores políticos portugueses sobre o (não) racismo em Portugal – entre os quais destaco Rui Rio e Jerónimo de Sousa – mostram o quanto desse legado lusotropicalista ainda subsiste. A ideia é que Portugal não é racista porque os portugueses são “naturalmente” empáticos, acolhedores e, no geral, boa gente. Em Portugal, uma grande parte da população – incluindo uma parte da classe política – vê o racismo como aquilo que ele era há 20 ou 30 anos – uma luta por direitos civis. O Chega, que é um bom barómetro de parte da sociedade portuguesa, utiliza esta mesma narrativa para desproblematizar o problema e até gerar movimentos absurdos – como a marcha anti-anti-racista – que tem uma adesão real da sociedade. É remetendo para a narrativa lusotropicalista, jogando com uma conceção desinformada do colonialismo português, que este discurso populista se torna viável.

As nuances da nova luta anti-racista – uma luta que já não é predominantemente sobre direitos civis, mas sim sobre crenças internalizadas que afetam a real igualdade de acesso a bens e serviços – requerem o mesmo tipo de rotura com o sistema que foi necessária nos anos 60 nos EUA (e um pouco por todo o mundo). É urgente assumir um debate público sobre a descolonização e para isso há que contar com a comunicação social – essencialmente as três principais estações de sinal aberto -, a imprensa escrita, a comunidade académica e científica, e até os social media, para que se comece a falar sobre colonialismo e descolonização da mesma forma que se fala sobre apoios públicos às touradas, eutanásia ou a nacionalização da TAP.