A coisa descreve-se com facilidade: 23 andares, cada um com 14 apartamentos. Este é um dos edifícios que a CML se propõe construir em Benfica ao abrigo do Programa Renda Acessível. Por agora estamos na fase dos maravilhosos esboços. Obviamente ninguém vê qualquer inconveniente neste edifício com os seus mais de 300 fogos pois desde que “o Zé que fazia tanta falta” se tornou vereador os inflamados amantes de Lisboa perderam o medo das alturas… e já agora também das profundezas porque tanto quanto nos é dado ver usam os túneis sem que o coração lhes estremeça! Também não há dúvidas sobre o modelo de financiamento – uma espécie de parcerias público-privadas em que a autarquia concessiona sem qualquer discussão os terrenos; fornece os “desenhos inspiracionais” para o projecto e selecciona em quatro semanas os inquilinos (deve ser mesmo a única coisa que a CML consegue fazer em tão pouco tempo).

Esta torre em Benfica cumpre o guião das notícias sobre arrendamento. Estas começam invariavelmente com expressões como “Governo quer” (expressão não despicienda pois, em Portugal, o direito a querer não se baseia tanto nos resultados eleitorais mas sobretudo no reconhecimento de que há sectores da sociedade cujo querer tem de ser aceite pelos demais como uma ordem) ou “CML abre concurso” que é uma espécie de pleonasmo do já referido “Governo quer”.

Mas voltemos ao guião das notícias sobre arrendamento, expresso o querer governamental logo vem o detalhar da sua magnitude que passa invariavelmente por combater um flagelo. Em seguida dá-se um nome à coisa que tanto pode ser o poético Programa Chave na Mão, anunciado em Abril de 2018, como o recente Direito Real de Habitação Duradoura (a PJ está claramente a perder para o Governo em matéria de imaginação na hora de baptizar as suas iniciativas).

Invariavelmente num curto espaço de tempo outras medidas surgirão. O tropel de anúncios é tal que antes de se ter fixado o nome de um programa  já outro está ser anunciado. Mesmo quando o anunciado não passa de um delírio como acontece com o referido Programa Chave na Mão. Lançado em Abril de 2018, o Programa Chave na Mão foi apresentado naquele falejar opaco (cada vez mais característico da administração pública!) como um “novo instrumento de mobilidade habitacional para a coesão territorial e visava facilitar a mobilidade habitacional das famílias actualmente residentes em áreas de forte pressão urbana que queiram fixar-se em territórios de baixa densidade”.

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Traduzindo, o proprietário de uma casa em Lisboa ou Porto (áreas de forte pressão urbana) que queira ir viver para uma aldeia do interior (territórios de baixa densidade) entrega a sua casa ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para que este proceda ao seu arrendamento a custos acessíveis. Alguém sabe quantos foram até agora os portugueses, dignos sucessores dos Gamas e dos Cabrais de antanho, no que ao espírito aventureiro respeita, que arriscaram tal empreendimento?

O próprio Governo não parece ter acreditado muito neste seu programa porque alguém que a ele procure aderir não encontra mais informação sobre o Programa Chave na Mão que as notícias sobre a sua criação. Multiplicam-se os parágrafos sobre a mobilidade, a baixa e a alta densidade, a coesão territorial… mas nem uma linha sobre como pode afinal o tal proprietário de uma casa em Lisboa entregá-la ao IHRU para ir viver nas profundezas da raia confiado no rendimento que daí lhe vai advir.

Já o recente Direito Real de Habitação Duradoura, vulgo contrato vitalício, mesmo que não tenha um único aderente teve pelo menos o mérito de chamar a atenção para o lado irreal de muito daquilo que é anunciado para o arrendamento. Por um lado no dito Direito Real de Habitação Duradoura colocam-se os inquilinos a pagar uma caução que de tão elevada leva a que se pergunte: porquê optar por este contrato e não por comprar uma casa? E por outro omite-se que já existem contratos vitalícios: os contratos celebrados até 2003, em que os inquilinos tenham mais de 65 anos foram tornados vitalícios, tornando-se deste modo os senhorios numa espécie de cuidadores obrigatórios e vitalícios destes inquilinos, pois só a morte destes últimos os desobrigará a eles ou aos seus herdeiros de tal encargo. (Bendito país este em que senhorio tem mais obrigações para com um idoso que a sua família!)

Não começou de modo algum com este Governo a táctica de obrigar os senhorios a desempenharem o papel de segurança social mas sejam essa medidas tão mirabolantes quanto o Programa Chave na Mão ou o Direito Real de Habitação Duradoura ou mais pragmaticamente recorram eles à estratégia do cacete e da cenoura da fiscalidade como acontece com o Programa Renda Acessível (que será responsável pela tal torre em Benfica) encontramos nas intervenções deste Governo um fio condutor que remonta ao PREC: quem está no centro do zelo legislativo não são os inquilinos mas sim os senhorios. As medidas de apoio directo aos inquilinos são preteridas pela intervenção junto dos senhorios. O Programa Renda Acessível além de estar a legitimar a construção de equipamentos difíceis de gerir como a torre de Benfica pode tornar-se uma armadilha para os senhorios como aqui mesmo no Observador demonstrou o antigo presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, Victor Reis.

Por fim, na qualidade de contribuintes, convém que não andemos distraídos e tomemos nota de quem ganha os concursos públicos para a construção dos chamados edifícios de renda acessível, sobretudo da gigantesca torre em Benfica. Afinal a conta do condomínio de um edifício com mais de 300 fogos para mais arrendados vai ser alta. Não duvido também que os inquilinos tendo sido seleccionados pela CML dificilmente aceitarão ser despejados em caso de incumprimento. E as obras de manutenção quem paga?

Não é preciso ter dotes adivinhatórios para escrever que o acessível se vai tornar incomportável.

PS. Há assuntos que convém que fiquem esclarecidos. Afinal já cá andamos todos há muito tempo. Mais que o suficiente para sabermos que a amnésia é em Portugal uma forma de fazer política. Portanto, e indo ao que interessa, quem mente no caso da ausência de Santos Pereira na apresentação do relatório da OCDE sobre Portugal: o Governo ou a OCDE? Fonte oficial do ministério dos Negócios Estrangeiros respondeu ao Observador que “não houve nenhum veto” à presença de Santos Pereira. Mas fonte da OCDE garantiu ao Observador que o coordenador do relatório e diretor de estudos não estará presente porque o Governo não o permitiuEm conclusão, já vimos este filme! Ele chama-se “Sócrates não só existiu como pode existir outra vez”. E agora com a agravante de, ao contrário do que aconteceu no passado, termos agora como PR um refém da popularidade e de não haver oposição: a esquerda do PS está no bolso governo e o PSD desistiu de ser mais que um auxiliar do PS.  Já o PS mantém-se igual: aplaude tudo e fecha os olhos a tudo. Daqui por uns anos dirão que não perceberam nada. Ou, pior ainda, que foram instrumentalizados.