Aqui há tempos escrevi um artigo sobre “O jogo do Chega”, mas esqueci-me de referir um pequeno grande pormenor. É que o jogo é muito maior. Estará, então, Marcelo a jogar? Porque não? Quem não quereria brincar?

Deitar cá para fora declarações “polémicas” tornou-se quase uma forma de sobrevivência. Quem não o faz, não merece palco, e quem não tem palco, não é protagonista. O mundo mudou e é preciso recorrer ao salve-se quem puder.

A partir de 2010, nasceu um novo fenómeno: a cultura woke, que já todos conhecemos de trás para a frente. O propósito desta palavra significava estar acordado, “não se deixar anestesiar”. O significado já deve ter mudado, porque estamos todos a boiar na anestesia das palavras. Aproveitámo-nos de lutas identitárias para andarmos todos aos gritos. O maior sintoma social disto? Andamos todos perdidos da nossa identidade e ocupamo-nos a “andar à bulha” com as identidades dos outros.

Há alguns pressupostos que me parecem essenciais para criar declarações dignas de capa de jornal: ser conclusivo e absolutamente contundente na defesa da sua ideia; aplicar dose razoável de sobranceria e confiança cega; utilizar palavras abrasivas e em baixo número; ser breve. Em poucas palavras: largar a bomba e correr. Em 2024, quase tudo tem tempo limite. Os tik toks e os vídeos de consumo rápido têm quase todos menos de 60 segundos (quando não têm menos), os debates políticos foram a correria que se viu. Este fim de semana, revi O Padrinho, e dei-me conta de que os filmes no cinema já não vêm com a famosa e deliciosa intermission. E porquê? Porque não há tempo, há tanta pressa e tão pouca atenção. Vejo-o à minha volta, entre pares, nas crianças, nos adultos, deixámos de ter paciência para exposições demoradas, estamos a rejeitar o tempo que as coisas costumavam tomar. O nosso polegar nunca foi tão rápido, e só queremos vídeos de 20 segundos que não nos façam pensar. E temos tanta pressa para quê? Ninguém sabe bem responder.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há um lado vicioso neste tipo de declarações: é o amor/ódio no seu expoente máximo. Marcelo pegou num tema sensível: os danos causados ao longo da História. Havia duas opções mais populares, ou Marcelo teria dito que as colónias é que tinham de pagar os custos pelos bens deixados pelos portugueses (e não duvido que muitos o teriam apoiado); ou Marcelo teria dito exactamente o que disse, que os portugueses é que tinham de compensar as colónias. Há amor e há ódio para dar e receber em ambas as declarações. Fosse qual fosse a declaração, o que faltaria sempre seria uma continuação. As conversas, os diálogos, os debates não foram feitos para demorar tão pouco. Hoje dizemos as coisas sem ter tempo para as pensar a seguir, sem ter tempo para as debater.

Vou dar um exemplo:

Pessoa A: “O aborto é sempre o assassinato da vida de um BEBÉ!”

Pessoa B: “Eu revolto-me com todos os abortos que NÃO se puderam realizar!”

Hoje em dia, a conversa fica por aqui. Se estivéssemos num café, ninguém acabava sequer de beber o café, levantavam-se e iam-se embora. Conversa terminada, assunto discutido. O que cada uma das pessoas leva daquele momento? Nada. Mas é para o lado que ambas dormem melhor.

Não me interessa aqui discutir o conteúdo das declarações do Presidente (até porque não é muito). Interessa-me mais falar desta fórmula que se criou, e do porquê de ainda ficarmos todos tão chocados. É por estarmos mais habituados a ver este tipo de fórmula ser usada por Donald Trump ou André Ventura? Desengane-se quem ainda pensa que eles são uma espécie diferente, à parte do mundo. Estamos todos a um passo de nos tornarmos consumidores ávidos desta fórmula poderosa de amor/ódio. E diz alguém: “mas eu não penso como eles!”. Pois não, pensas à tua maneira, mas provavelmente aplicas a mesma fórmula ao teu pensamento, cego, mudo e surdo, gritas as tuas frases, sem ouvir ninguém.

– “Tchhhhhhhhhhhhhhhhhh”.

– Que barulho foi este?

– É a descarga.

– Que descarga?

– A do autoclismo.

– Então, mas eu estava a falar.

– Não tinhas já acabado de falar?

– Acabei agora.

– Então! Não deve ter sido assim tão importante, foi o tempo da descarga do autoclismo. Eu ouço para a próxima! Olha, sabes, para mim, a eutanásia é….

– “Tchhhhhhhhhhhhhhhhhh”.