A noite do circo, dos irresponsáveis, das birras, das crianças e dos adultos. Chamou-se tudo àquela noite de 26 de março, e mais se há de chamar aos dias todos que se seguirem. Os adultos na sala decidiram unir-se contra a “criança” na sala: um partido político liderado por uma “criança”, composto por 50 “crianças” e no qual votaram, talvez o número mais espantoso da equação, 1.169.836 “crianças”. Como não se pode votar antes dos 18 anos, conclui-se que não é possível que este número se traduza mesmo em crianças. Isto é uma piada, claro, mas se já vale acusar um partido, no qual votaram mais de 1 milhão e cem mil portugueses de fazer birra, vale tudo.

O não é não mantém-se firme, ou pelo menos, tenta. Sim, há nãos que não se explicam nem têm de se explicar, mas não aqui, não na política, não ao povo, não à democracia. O povo merece uma explicação para o não. O Chega é um partido antidemocrático, dizem todos menos o Chega. A bandeira que se levantou é a de que se tem de “acarinhar, proteger a democracia”. A democracia não se protege ignorando votos, e se o caminho for esse, os votos fazem o papel de proteger a democracia, multiplicando-se.

“O Chega é um partido de bloqueio”, dizem todos menos o Chega. Já que se intitulam todos de adultos, o que aconteceria se ignorassem a criança que chora na sala? Será que ela desaparecia? Evidentemente que não, ela continuava a ser um bloqueio, e porquê? Porque ninguém quis falar com ela. Aplica-se o mesmo princípio aqui, por mais estapafúrdio que possa parecer.

“O Chega é o inimigo da democracia”, dizem todos menos o Chega. O que se faz aos inimigos? Vou buscar as palavras de outros que souberam e viveram mais do que eu. “Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo o seu escravo” (Jorge Luís Borges). “A tua atitude emerge do que costumas dizer: «Ainda sou capaz de utilizar quem é por mim. Mas prefiro, por comodidade, mandar o meu adversário para o outro campo e abster-me de agir sobre ele, a não ser pela guerra». Ao proceder assim, não fazes mais que endurecer e forjar o teu adversário.” (Antoine de Saint Exupéry).

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Não é ridículo citar escritores, filósofos, homens do saber e aplicar as suas reflexões à modernidade. Ridículo é que o parlamento tenha deixado de ser o lugar de pensadores, criativos, filósofos, homens e mulheres do saber.

Todos se tornam escravos do Chega de cada vez que lhe dizem não. Todos endurecem o Chega de cada vez que o arremessam, com desdém e desprezo, para o outro campo. “Selvageria”, dizem todos menos o Chega. O diálogo com o outro ainda é a melhor forma de atacar, de defender e de chegar a um consenso, mesmo que pouco consensual. O jogo do Chega, dizem todos menos o Chega, mas todos jogam o jogo do Chega. Falar com o Chega é parar o jogo, é admitir que são todos adultos na sala, mas é muito mais fácil olhar o outro de cima para baixo quando lhe damos o estatuto de “criança”, e as verdadeiras crianças que me desculpem.

Devemos dialogar com todos, dizem todos, mas ninguém dialoga com o Chega. Quase que dá mesmo vontade de perguntar o que teria acontecido se o Chega tivesse ganho as legislativas. Será que até a democracia se destruía em nome da própria democracia? Se 1.169.836 de pessoas é um número insuficiente para ter voz, é bem possível que o povo lhes dê um número suficiente da próxima vez.

Os que tanto medo têm do Chega andam a tentar construir uma barreira de ferro que impeça o Chega de chegar ao poder, mas porque insistem tanto nessa barreira? Se estão tão certos de que o Chega não tem soluções para os portugueses, deixem-nos mostrar-lhes. É como o amor platónico de Petrarca, o ser amado idealizado que nunca deixamos que se nos revele será sempre perfeito. Se querem tanto que o Chega não volte a ter 1 milhão e cem mil votos, deixem-nos, ao menos, jogar.

Neste jogo da inGlória, há claramente quem não tenha peões para jogar, mas se não se joga, não se perde. O Chega até pode querer muito jogar e ter sede de ganhar, mas os “adultos” na sala estão tão sedentos de ganhar que nem deixam os outros jogar.