“O crime de incitamento ao ódio racial envolve a publicação ou a distribuição de material ofensivo ou abusivo, que pretende ou é capaz de alimentar o ódio racial. Assim, se alguém “retweeta” isso, se partilha isso, potencialmente comete esse crime. E nós temos agentes da polícia exclusivamente dedicados a vigiar as redes sociais. O trabalho deles é procurar material do género, e depois accionar processos de identificação, detenções e por aí fora. É algo de muito sério. As pessoas pensam que não estão a fazer nada de mal. Estão. E sofrerão as consequências.”

Desculpem a longa citação, a qual, só para que fique claro, não é o péssimo monólogo de um péssimo vilão num péssimo filme. Ou, bem vistas as coisas, se calhar é. O autor das afirmações acima chama-se Stephen Parkinson e, desde Novembro de 2023, manda no Crown Prosecution Service, uma espécie de Ministério Público da Inglaterra e Gales. As crianças e os ingénuos terminais acharão louváveis as intenções do homem, que afinal, coitadinho, apenas quer impedir o “racismo” e punir os “racistas”. Mas quem não se ri à menção da palavra “hemorróidas” percebe que o objectivo é outro.

O objectivo do sr. Parkinson é proibir a divulgação de opiniões e informações não devidamente filtradas sobre a guerra civil que se cozinha na terra dele. A propósito de guerra civil, Elon Musk usou a expressão no mesmo contexto e inspirou uma onda de indignação e exigências para que se abolisse o Twitter e, idealmente, o próprio Musk. Na Venezuela, o ogre local já atingiu metade dos desígnios (e, a fim de alcançar a metade restante, desafiou o bilionário americano para um encontro de porrada com transmissão ao vivo). O Reino Unido vai a caminho, e por enquanto desatou a prender cidadãos por “espalharem desinformação”.

O conceito de “desinformação” é um primor. Em primeiro lugar, é espantoso que seja o Estado, fonte suprema de confiança, a decidir o que a ralé deve afirmar ou consumir. Em segundo lugar, é extraordinário que simulacros de jornalistas saltitem de alegria perante a imposição da censura. Em terceiro lugar, é de censura que se trata, e um regime onde vigora a censura não é um regime democrático. Ao reduzir a questão a um confronto da “verdade” com a “mentira”, a ortodoxia no poder esquece-se de referir um pequeníssimo pormenor: o de que a decisão acerca do que é verdadeiro é sempre deles, e só nós mentimos. Quando os factos dependem de quem detém a força, os factos morreram. E a liberdade também.

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O sr. Parkinson fala em “ódio racial”. Na verdade, que como se vê é um anacronismo, o que, nas entrelinhas do seu cérebro funcionário, o sr. Parkinson realmente diz e realmente deseja erradicar é “frases, imagens, palpites desagradáveis para com muçulmanos, certas minorias étnicas ou peculiaridades sexuais ou físicas que esteja na moda acarinhar”. A título de exemplo, não tenho notado as autoridades do Reino Unido demasiado preocupadas com o ódio aos judeus, no recato da internet, nos protestos de rua e, às vezes, no lombo do judeu mais à mão. É possível que considerem os apelos à extinção de Israel e ao extermínio dos seus habitantes uma manifestação de carinho e, sobretudo, uma aspiração genuína e factualmente inatacável. Não sei. Eles, por definição, é que sabem. E decidem em conformidade.

Se tamanha miséria se resumisse ao Reino Unido, a miséria seria suportável: não ponho lá os pés há 18 anos, e há 22 que evito Londres com intenso zelo. O que me interessava naquelas paragens ou desapareceu ou prepara-se para desaparecer ou resiste em doses insuficientes. A chatice é que os ataques à civilização não se esgotam ali. Na América, país com que mantenho uma relação próxima e tumultuosa, há agora um candidato a vice-presidente convicto de que a liberdade de expressão não inclui o “discurso de ódio”, ou seja, o que ele e os comparsas dele decidem ser “discurso de ódio”. Suponho que, se a dona Kamala for eleita em Novembro, explicar ao sr. Tim Walz que os rapazes não menstruam engrossará a lista de crimes passíveis de cadeia. Porém, incendiar e saquear cidades a pretexto de “injustiça social” candidatará o criminoso a uma medalha por actos cívicos.

Os ventos gelados da censura, naturalmente seleccionada, e da submissão, evidentemente orientada, sopram no Ocidente inteiro, por acaso o pedaço do mundo que, após séculos de cabeçadas, conseguira arranjar um lugar humano para o indivíduo na sociedade, e um equilíbrio sofrível entre direitos e obrigações. Foi, compreendemos hoje, um equilíbrio precário, que durou por alto meia dúzia de décadas e deixará saudades. Minto: não deixará saudades a toda a gente. É escusado visitar o estrangeiro para sentir o apetite de tantos por restrições, mordaças, castigos. Portugal, o Portugal institucional e o Portugal anónimo que, da esquerda à direita, se manifesta nas “caixas” de comentários, rebenta de apelos a tempos menos livres. Talvez essas criaturas imaginem que, no divertido exercício da opressão, lhes caberá a parte de cima, e não lhes ocorre a enorme probabilidade de acabarem em baixo.

Nota: Por férias do autor, está crónica regressa a 31 de Agosto.