Temos várias vidas, raramente alinhadas umas com as outras e com as prioridades, muitas vezes, todas trocadas. Somos movidos por uma agitação permanente, como pequenos hamsters numa correria insana, com a sensação de que vivemos esgotados, quase nunca sem se sair do mesmo lugar. Trabalhamos horas demais, rodeados de objectivos e de níveis de produtividade sempre mais exigentes. E temos relações de trabalho, muitas vezes, muito tóxicas, que fazem com que o espaço que ele nos reserva para nos escutarem, nos respeitarem e para sermos nós acabe por ser , muito poucochinho.

Guardamos para o fim de semana aquilo que não vivemos todos os dias. Para as férias tudo o que adiámos ao longo de um ano. E para a reforma os sonhos, os pequenos prazeres e os momentos que nos criam memórias e dão sol e alma à nossa vida.

Temos, todos os dias, a sensação que há sempre qualquer coisinha de importante que, demasiado cedo, se tornou longe demais. Raramente sentimos que a nossa vida tem a nossa cara. E mandamos muitíssimo menos nela do que parece. Na maior parte das vezes, surfamos nos dias, mas mal os gerimos. Mas, ainda assim, esperam que sejamos eficazes. Empreendedores. “Boas ondas”. Que, mesmo quando temos a sensação que nos exploram, nunca deixemos de “vestir a camisola”. Que assumamos como nossos objectivos de trabalho que não condizem com aquilo que sentimos, nem sequer com o que achamos razoável. Mas esperam que sejamos positivos. Que sejamos produtivos. Que tenhamos saúde mental e bem-estar. Mas que sobretudo, trabalhemos. Muito.

Trabalhamos em open spaces mas interminavelmente controlados. Esperam mais que obedeçamos do que pensemos ou falemos. E somos muito menos livres do que o que parece. Perante isto, talvez a questão fundamental não passe por constatarmos os números astronómicos de episódios depressivos e de burnout que acontecem nas empresas. Mas reconhecermos que, num clima de agitação desta dimensão quase cataclísmica, é estranho que não haja muitos mais. Afinal, o trabalho, tantas vezes transformado como o factor de grande desequilíbrio para a vida mental, talvez seja, para muitíssimas pessoas, aquilo que as ajuda e as organiza e as faz fugir doutros burnouts que a vida lhes traz.

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Como se nada disto já não fosse demais, os filhos custam uma fortuna por dia. Um primeiro filho implica uma derrapagem de 20 a 25% no orçamento dum casal. Ocupam espaço de segunda-feira a domingo. Por causa deles, o dia das mães começa entre as 6 e as 7 e vai até às 24. O tempo que um homem dedica a si próprio e à família é o dobro do tempo diário que uma mulher gasta consigo e com a família. O que é injusto! E, mesmo assim, a sensação que ambos acabam por ter é que o tempo nunca lhes chega. O trabalho e os filhos fazem com que, muito depressa, um homem e uma mulher coabitem; sim. Mas mal convivam. Pouco falem. E namorem quase nada.

Já agora, vendem-se em Portugal 13 milhões de livros e 24 milhões de embalagens de psicofármacos (1 livro por cada 3 embalagens destas, considerando os adultos com mais de 35 anos). Uma imensidão deles que nos sugerem hábitos e mais hábitos; de preferência, atómicos. Métodos (infalíveis…) para mudarmos de vida; de um dia para o outro. Programas que tornam o sono fácil, os ultraprocessados supérfluos, a limpeza cerebral uma vitória a que se chega em três tempos e a procrastinação numa tontice do passado. E que nos propõem pilares para a auto-estima, regras para a vida, a felicidade autêntica e um controle domesticável sobre as emoções e o stress, que nos levem a ser, sobretudo, focados e motivados para os objectivos que todos nos pedem. Mas pouco pessoas.

Pagam-nos pouco. Escutam-nos pouco. Fazem muito pouco com que cresçamos como pessoas. Mas, depois, sempre que não reparam em nós ou não nos dão espaço para interpelar e para pensarmos em conjunto, propõem-nos um jantar de natal ou um ou outro recreio de team building. E enchem-nos de discursos motivacionais. E essa forma, desajeitada, de lidarem connosco, é bem a face visível do modo como nos desconsideram. Nos imaginam tontos. E nos supõem facilmente manipuláveis.

No meio de tudo isto, pedem-nos que, sem se trabalhar menos e sem nos respeitarem melhor, conciliemos melhor trabalho e família. Como se, em consequência duma engrenagem doentia, não nos tivéssemos tornado pessoas demasiado sozinhas para aquilo que devíamos ser. E sempre à espera que um rasgo divino altere aquilo que temos a sensação que, hoje, nos afasta 10 centímetros de tudo o que mais queríamos. Amanhã, mais 20. E, depois, mais 50 ou 60 ou, até, 100. A ponto de termos, sobretudo, saudades daquilo que já fomos. E tudo o que era importante e que em acreditávamos pareça ter-se tornado num lugar distante. Mais próximo duma miragem que doutra coisa qualquer.

A vida de inúmeras pessoas, na sua relação com o trabalho, é, muitas vezes, assim. Mas trabalhadores, colaboradores e pessoas não são bem sinónimos quando se fala de trabalho. A revolução industrial tentou transformar cada homem na peça duma engrenagem. O neo-liberalismo, numa máquina. E as novas tecnologias em fantoches que se deixam condicionar. Algumas empresas, enquanto fazem assédio moral, disponibilizam ginásios e aulas de yoga. E seminários sobre a relação entre o trabalho e a família. E diante de tudo, fala-se (muito!) de saúde mental. Embora se trabalhe, quase todos os dias, para a comprometer.

Por isso mesmo, a responsabilidade social das empresas não deveria começar na forma como canalizam meios financeiros para causas sociais. Mas na forma como não delapidam os recursos humanos que têm ao seu dispor. Até porque se estima que mais de um quinto da população sofra de uma perturbação psiquiátrica. Que a prevenção da saúde mental nas empresas possa reduzir as perdas de produtividade em, pelo menos, 30%. E se assuma que a depressão será a primeira causa de morte, a nível mundial, em 2030. Amanhã, portanto.

Finalmente, ninguém diz que somos inacreditavelmente sensíveis, atentos e inteligentes. Que somos comoventes. E amorosos, amáveis e amantes. Que, mesmo que disfarcemos bem, pensamos 24 horas por dia. Que precisamos de falar para arrumar as ideias, o cérebro e o corpo. Que precisamos de tempo. De muito tempo para sermos quem somos. E que pensar é sempre o melhor remédio.

Chegados aqui, é altura das empresas reconhecerem que em cada pessoa têm uma matéria-prima preciosíssima para o seu crescimento. Por isso mesmo, aquilo que mais se devia pedir ao trabalho é gestão. Gestão de recursos humanos! Para que tudo o que temos para dar não se meça, ao metro, contando as horas madrugadoras em que entramos e as horas tardias a que saímos do trabalho. Afinal, há uma diferença do tamanho da vida entre matarmo-nos a trabalhar e sermos pagos para brincar!

Aquilo que no século XXI se pede ao trabalho é outra revolução. Agora de rosto humano. Que nos torne só pessoas que trabalhem o mínimo indispensável. E que encontrem nele as encruzilhadas de todas as suas vidas que façam do trabalho a sua cara. Que não queiram senão pessoas que pensam. Pessoas com vida. Com mundo. Com relações, com projectos e com hobbies. Com tempo para si e para quem lhes dá razões acrescidas para viver. Pessoas que amem a vida em vez de se cansarem com ela. Pessoas que, mais do que ganharem a vida e terem um emprego, ganhem vida. Ganhem à vida! Também com o trabalho, claro! Para termos a sensação que as empresas, o estado e a vida, no seu dia a dia, não nos exploram. Ou não nos matam devagarinho. E que só teremos direito a ter futuro se nunca deixarmos de reclamar o enorme compromisso de termos presente.