Este fim-de-semana os jornais europeus encheram-se de notícias a propósito da morte do oftalmologista que avisou as autoridades e público chinês da existência do Coronavírus, sendo primeiro ignorado e depois censurado pelas autoridades. Seguiram-se artigos de opinião explicando que o mecanismo de controlo de informação das ditaduras tem este problema: para esconder uma crise – neste caso, de saúde pública – corre-se o risco de a agravar ainda mais. Mas isso conta pouco para estados em que a vida humana é sistematicamente preterida em nome de um suposto “bem maior”, neste caso a sobrevivência do regime chinês.

O ocidente tem ignorado, também de uma forma sistemática, o que se passa na China. Encolhe-se os ombros. Não importa assim tanto se se viola sistematicamente a privacidade através de uma apertada vigilância tecnológica; se se viola a liberdade religiosa e a integridade da vida em campos de reeducação; se se proíbe o acesso à informação e se cria uma sociedade cada vez mais alienada e menos crítica em relação ao seu próprio destino; se os manifestantes de Hong Kong arriscam a vida para a manutenção dos critérios mínimos de democracia. É lá com eles.

Mas não é bem assim. Estes últimos dias vêm com o travo amargo da globalização. Afinal o que acontece do outro lado do mundo pode influenciar a nossa vida. Significa isto que devemos ter uma posição diferente em relação à China?

Os anos 1990 e 2000 tornaram muito claro que a agenda da liberalização subscrita pelo ocidente não é viável. Os estados não mudam o seu tipo de regime por pressão externa, mesmo que seja uma pressão armada. O liberalismo não é universal. Tentar transformar Pequim através da integração ou da coação internacional não só é inútil como contraproducente. Mais a mais, neste momento particular, não existem estados que tenham simultaneamente poder e vontade política para o fazer.

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Mas isso não exclui uma outra opção, eminentemente defensiva. Reconhecer que a China tem, efetivamente, um projeto de expansão internacional, e que, a concretiza-lo, terá o mesmo tipo de comportamento relativamente a outros estados. Politicamente, é preciso evitar que Pequim tenha demasiada influência sobre a soberania de cada um.

Não se pode, nem deve, deixar de ter relações comerciais e diplomáticas com o regime chinês. Seria, aliás, insensato. Mas é preciso determinar que áreas são vitais à soberania nacional e mantê-las fora do alcance dos negócios com a China.

Só a indiferença ocidental permite o que aconteceu há uns dias no Reino Unido. Boris Johnson, cioso do novo papel internacional da Grã-Bretanha, cedeu até 35% do mercado das telecomunicações 5G à Huawei, alegando que as “partes sensíveis”, passíveis de serem espiadas, não estavam ao alcance da companhia (que por lei é obrigada a dar todas as informações solicitadas pelo governo chinês). Ainda que tudo indique que a proteção digital é muito difícil de garantir. Se a privacidade dos chineses é negligenciável, porque é que a dos britânicos não será também?

A decisão britânica permite ganhos de curto prazo. Não só comerciais, como políticos. Johnson esta desejoso de diversificar as relações do Reino Unido e de dar um sinal aos Estados Unidos e outros aliados de que vai fazer valer a recém-adquirida autonomia estratégica. No médio prazo, é um risco demasiado grande para um estado correr.

Não haja ilusões. A China é um ator internacional de grande relevo e há grande probabilidade que o seu papel seja cada vez mais preponderante. Mas Pequim é também um estado autoritário que prefere assegurar a permanência do regime a proteger a população. E se assim é dentro das suas fronteiras – onde precisa de manter legitimidade – porque haveria de ser diferente internacionalmente?

Podemos pouco quanto à sorte de outros povos para além de manifestarmos solidariedade. O ocidente até já tentou mudar alguma coisa a esse respeito e teve sucesso muito reduzido. Mas a indiferença ao que se passa no internamente noutros países é meio caminho andado para se cometerem erros internacionais de consequências duradouras. É que o que é um “bem maior” na China não é um bem maior nas sociedades democráticas.