Assistimos, nas últimas semanas, à polarização da luta dos que defendem os restaurantes. A construção desta clivagem evidenciou uma enorme letargia de valores de âmbito social: de ética, humildade de classes, abnegação, consciência, ponderação, proporcionalidade, colocando a nu o apoio a uma falácia que fica bem nas redes sociais, mas que é muito perigosa em contexto pandémico. Resta fazer contas ao impacto que os movimentos tiveram na saúde financeira dos que continuaram a lutar (como todos estamos, aliás) e na credibilidade percebida da solidez dos restaurantes.

Uma árvore com muitos ramos

Sem sombra de dúvida: ser empreendedor em Portugal não é tarefa fácil e daqui se devem retirar e entregar todos os méritos àqueles que decidem usar os seus recursos e energia na construção de projetos empresariais de valor.

No entanto, no caso dos restaurantes, estes  requerem neste contexto atual uma complexidade de gestão e de competências muito mais amplas do que o mero conhecimento culinário. Um gestor em restauração deve possuir conhecimentos de alimentos e bebidas, é certo, mas também de contabilidade e finanças, de gestão de recursos humanos, de marketing, de direito, de sociologia, de data analysis, de segurança e prevenção, de filosofia, de design, enfim. Já não basta ser um exímio cozinheiro para ter um restaurante de sucesso, tornando-se necessário ser também diplomata e analista político para travar e/ou analisar eficazmente as lutas que se lhe afigurem necessárias para conduzir à sobrevivência dos seus negócios.

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A árvore de custos é enorme neste negócio e a de proveitos apenas tem dois ramos: comida e bebida. É, pois, uma tarefa hercúlea na atualidade, e sobretudo com a falta de procura, equilibrar esta árvore para que não rache, não adoeça e se mantenha viva, floresça e frutifique saudavelmente.

Diplomacia kamikaze e a falácia dos valores

Aquilo a que assistimos, porém, nas passadas semanas com a luta da restauração, e protagonizada por alguns empresários da restauração, foi a uma imprudência que se generalizou e colheu apoios em torno de uma falácia formal – a ideia de que a redução de impostos e a atribuição de subsídios salvaria o setor – a que incrivelmente, e em determinado momento, se associou um inflamado ideário, vindo não se sabe de onde e que em nada aproveitou nem em nada se liga a esta luta, como a redução do número de deputados que chegou a ser pedida no meio da luta da restauração, na manifestação do Rossio. Perdeu-se o foco e, mais uma vez, todos os valores foram postos a dormir.

Podemos, prosseguindo, entregar-nos a esta falácia, escolhendo um de dois caminhos. Ou aceitamos a romantização do momento que (todos!) atravessamos e se aceita a hibernação de valores sociais tidos como necessários para a prática de uma diplomacia causal eficaz, que neste cenário se assume como kamikaze e sensacionalista, não potenciando a lucidez dos factos que tanto falta em momentos de crise, ou caminhamos para uma tomada de decisão racional, convicta, articulada e consistente que nos leva à saída desta crise (e não só da de valores) de uma forma mais robusta, através da reinvenção.

A romantização da falha e o grande Robin Hood fiscal

No primeiro cenário, o da romantização do falhanço dos negócios – que sem sombra de dúvida incorrem numa época sem precedentes de falta de procura, algo que se distancia largamente da crise de 2011 –, e que levou e esteve na origem da criação de movimentos, aproveitaram-se todos os palcos para pedir pensos rápidos para o setor: descidas de taxas de IVA e descidas na TSU, cujos clamores duram desde maio, numa brutal imprudência de curto prazo, a quente, aproveitando-se a oportunidade para se solicitarem subsídios a fundo perdido para o setor, como as associações representativas já haviam pedido. Nada se adicionou à discussão, como poderiam ter sido os incentivos ao consumo em restaurantes, como os Cheques Restaurante, ou o estabelecimento alargado de redes de entrega municipais e intermunicipais de comidas e bebidas (como fizeram Viseu e Matosinhos).

Importa relembrar que o IVA é pago pelos consumidores e deduzido pelas empresas, onde estas são meras intermediárias entre o cliente e o Estado. Chamar a si o direito de arrecadar o que eu, como cliente, entrego em impostos quando tomo uma refeição é desonesto. É uma espécie de aceitação de um grande Robin Hood fiscal não credenciado pelos seus beneficiários. E é em sede de eleições que eu decido em que programa e com que peso fiscal quero votar. Não cabe aos restaurantes clamar e gerir um aspeto fiscal, numa luta pela sua sobrevivência, que não foi desenhado por eles e que, ademais, não resolve nenhum dos seus problemas.

Pelo que – e a haver uma gestão lógica do negócio (com fichas técnicas bem elaboradas e honestas, análises de profit & loss, orçamentos bem estruturados e realistas quanto a todos os cenários que o negócio pode enfrentar e ligados a alguma inovação) – mais nada resultaria a não ser a potencial incongruência e desonestidade em baixar a taxa de IVA e praticar os mesmos valores na venda de comidas e bebidas.

Impactará a confusão das lutas nos serviços consumidos e na perceção de solidez?

Há que relembrar, neste ponto, uma ideia importante: continuamos a falar de um mercado equilibrado pelas regras da oferta e da procura, em que o cliente vai tomar a sua refeição ao sítio que mais lhe apraz, sendo a escolha condicionada por muito mais do que o fator preço.

Se, por conta dos vários confinamentos, se eliminar a variável espaço da decisão de consumir produtos de um restaurante, cada vez mais o cliente precisará de muito mais razões para encomendar comida para consumir em casa: em regra, a identificação com o produto adquirido, a diversidade, o conforto e, por fim, o preço, passam a ser razões primárias para pagar pelo serviço.

E, visto por aqui, pela confusão que se criou na falhada diplomacia, receio que muitos tenham perdido mais clientes do que aqueles que ganharam em virtude de ter saído abalada a credibilidade e a solidez do setor, que apesar de fortemente clivado – recorde-se – foi o primeiro a desconfinar e a adaptar-se para abrir as portas a 18 de maio. E fê-lo eximiamente.

Subsídios? Com que garantias de eficácia?

Por outro lado, o cenário da injeção de subsídios a fundo perdido não deveria vir sem uma contrapartida.

Numa pequena análise que fiz anteriormente à saúde financeira do setor, era desde logo evidente que algo não estava muito bem, nada bem, aliás. Mesmo sabendo que os dados dizem respeito a 2018, o que auxilia ao entendimento da situação pré-crise pandémica e com o pico turístico nas ruas e em todos os estabelecimentos, sabíamos já na altura que mesmo com uma procura em alta, 947 microempresas de restauração que tinham pelo menos um restaurante de tipo tradicional (restaurante com serviço de mesa) declararam falência; o setor tinha uma autonomia financeira de apenas 16,1%, o que significa, sejamos claros, que 83,9% dos capitais em gestão no setor da restauração são capitais alheios (créditos, produtos financeiros, etc.); a margem de lucro líquida média foi de 2,4%; 43,1% dos restaurantes deram prejuízo.

Perante estes dados da Central de Balanços do Banco de Portugal, e não querendo acreditar que os mesmos não reflitam a fotografia exata do país, como pode um cidadão ousar aceitar a entrega de subsídios a fundo perdido a gestores que conduziram o setor desta forma e com resultados tão negativos? Não servirão estes auxílios a fundo perdido para perpetuar a predominância da ajuda alheia num setor em que a formação escasseia e tornar o setor ainda mais dependente? A bola de neve não parará.

Formação obrigatória em Gestão da Restauração e incentivos ao Consumo

Por isso mesmo, peticionei já alguns deputados à Assembleia da República (que, convenhamos, não devem ser tratados por “queridos”, a bem da dignidade do cargo que ocupam e a dignidade que o voto de todos conferiu à sua missão) a desenharem (ou a pedir para desenharem) um programa de formação obrigatório para Gestores em Restauração e a contratualizar resultados inerentes à entrega dos subsídios ao setor, para que acordemos todos os valores que deixámos do sono profundo. Não basta enviar o dinheiro de todos para os Restaurantes, sem mais. E, se assim for, que seja pela via do consumo, como a política dos Vales/Cheques Restaurante.

Precisamos todos de perceber, e aqui reside o segundo cenário, que as subvenções públicas darão respostas a problemas estruturantes destas empresas, que estas se reinventam, que são um valor adicionado para a nossa sociedade e que aceitam melhorar a sua performance. Para seu bem, dos seus empregados, dos seus fornecedores e de todos nós.

Não interessa, como vemos, fazer umas partilhas no Facebook de um texto de um professor de Hotelaria e Turismo que dá aulas há 27 anos e que alinha no cenário da romantização da falha. Tão pouco interessa ceder à manipulação do discurso de geração de desemprego e da catástrofe anunciada pelo setor, se este não for ajudado a fundo perdido. Interessa reinventar o sistema, trazer saúde financeira ao setor e aos negócios.

Para isso, onde estão as associações e entidades representativas do setor? Onde estão as associações comerciais? Falta pensar em mudar o sistema por dentro. Falta debatê-lo, imparcialmente. Em torná-lo eficiente. Falta pensar em mudar o conceito da restauração. Afinal, é um conceito que, no essencial, nada mudou nos últimos 300 anos.