Pandemia e a restauração: a perpetuação da crise?

Tal como todos as indústrias, também a hotelaria e a restauração se profissionalizaram, deixando de lado as contas de mera execução para passarem o foco para métodos de planeamento e projeção de resultados, apoiando-se nas ciências económicas e comportamentais para a maximização do lucro enquanto, ponto fulcral, mantinham ou aumentavam a qualidade na prestação de serviços. Porém, fenómenos não acautelados, como a pandemia por Covid-19, com impactos nefastos nas operações (em toda a linha) vêm reforçar a fragilidade financeira em que o setor já se encontra, confirmando uma impossibilidade emergente de inovação, uma degradação das condições de trabalho e baixando a competitividade do setor.

O dado mais relevante de toda a análise é de que se estima, nas estatísticas do setor, que as operações em restauração apresentem lucros (depois de taxas e impostos) de cerca de 2,8% (dados de 2018). No caso português, este cenário apresenta-se de especial relevância sobretudo devido ao volume de que falamos, o qual é genericamente baixo. Ainda de acordo com os dados disponíveis, uma refeição num restaurante tradicional custa, em média, para duas pessoas, aproximadamente 18 euros. Do ponto de vista dos recursos humanos, o valor mínimo à hora atualmente pago é de 3,80 euros.

E a pergunta que se impõe é: como é que se inova (no plano laboral ou noutro) num setor com este cenário?

Quatro dias de trabalho em hotelaria e restauração: uma ilusão num setor “humanizado”?

Quando projetos, como a semana de trabalho de quatro dias, começa a ocupar o buzz das lideranças e dos think-tanks, há necessariamente exercícios de enquadramento a fazer.

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Como há dias escrevi, tenho consolidada a opinião de que setores altamente “humanizados”, no sentido da dependência da mão-de-obra (como as indústrias do primeiro e do segundo setor), irão ter dificuldade em apresentar uma solução para a implementação desta inovação laboral (em contraste com a adoção desta medida em setores onde a mecanização, na ótica da substituição da mão-de-obra, já é possível e com todas as questões éticas subjacentes).

Quatro dias de trabalho: negócios reforçados ou fragilizados?

Partindo do espírito desta filosofia laboral, a ideia não seria reduzir proporcionalmente o salário aos trabalhadores com a retirada de um dia de trabalho, uma vez que o projeto augura ganhos de felicidade, com impacto na produtividade, e um maior equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional (e, claro, a manutenção dos rendimentos).

Porém, a redução de três dias de trabalho na semana da hotelaria e restauração (ou a redução prática de um dia de trabalho) vem fortalecer a importância da discussão dos baixos salários e das baixas margens no negócio e das longas horas trabalhadas. Mas como se ultrapassará este problema num setor em que o principal ator, o cliente, não está disponível para pagar mais, as margens de lucro já são tão reduzidas e a burocracia é tão expressiva?

Certo é que os salários nesta indústria ocupam um dos principais fatores de decisão entre a permanência ou a fuga de recursos humanos e, pese embora isto, sabe-se que a média dos salários no setor se cifra perto do salário mínimo nacional.

Estes factos, associados à grave crise recente, são responsáveis pelas expressivas distorções no mercado de trabalho na área da hotelaria e restauração que me parecem não se consolidarem tempestivamente com a discussão da semana de trabalho de quatro dias.

E o papel dos gestores, qual será?

A maioria das empresas de hotelaria e restauração, com uma carga fiscal associada ao trabalho já bastante expressiva (entre custos diretos associados aos rendimentos e indiretos associados ao absentismo e ao turnover, em proporção do volume de negócios), já nem opta por explorar a possibilidade de criar uma nova equipa para que a unidade de restauração não feche em nenhum dia, para descanso do pessoal, potenciando assim a sua rentabilidade.

A verdade é que se do ponto de vista do gestor mais assertivo esta estratégia constituiria a potenciação de uma fonte de receitas, para o gestor mais consciente esta situação traria problemas ao nível da consistência no serviço e do aumento de custos do trabalho (que não devem ir além dos 25% do volume total de negócios de uma operação saudável). Se assim é, a semana de trabalho de quatro dias traria, no imediato, problemas acrescidos de tesouraria e no médio/longo prazo traria problemas relacionados com a sustentabilidade do próprio negócio.

Parece-me que o acréscimo de recursos humanos necessário para assegurar a sustentabilidade dos negócios e os dias sobejantes na semana se encontram muito para lá das possibilidades de tesouraria das empresas nesta indústria, o que constitui para já, e sem qualquer debate ainda desenvolvido, uma miragem nas intenções dos líderes globais para a consolidação deste projeto nestas indústrias.