1. Esta semana debatem-se as propostas de lei de bases da saúde (LBS) na Assembleia da República. Na saúde, parece-me que o prioritário seria promover a eficiência e a equidade na utilização dos recursos públicos para consagrar o direito constitucional à saúde. Isto passa por avaliar e melhorar a governação e gestão do sistema de saúde, avaliar as necessidades de recursos humanos (e.g. anestesistas essenciais para cirurgias) e as formas de os atrair para o SNS, identificar os necessários recursos financeiros adicionais e as prioridades do financiamento público, perceber como o maior investimento na prevenção pode poupar muito no tratamento (e.g. diabetes), e finalmente auscultar profissionais e eventualmente melhorar os incentivos nalgumas carreiras profissionais da saúde (e.g. enfermeiros). Avançar nestas prioridades não necessitaria uma revisão da LBS. Tanto mais que aquilo que mais determina as condicionantes da legislação em matéria de saúde é a Constituição e não tanto a LBS. Ter uma visão retrospetiva das principais alterações no artº 64º da CRP é assim muito útil (ver aqui o artigo de Sofia Crisóstomo). Houve apenas duas alterações constitucionais mais substantivas, em 1982 com o aditamento da gestão descentralizada e participada do SNS, abrindo a porta à criação das Administrações Regionais de Saúde e em 1989 com a substituição do princípio da “gratuidade” do SNS pelo da “tendencial gratuidade” abrindo a porta às taxas moderadoras. A tendência foi, assim, de implementar os princípios da universalidade, generalidade e, agora tendencial gratuidade, através de um modelo que se foi progressivamente afastando de uma visão mais socializante do papel do Estado para um modelo de maior articulação com os privados e o sector social. A última Lei de Bases (48/90) veio assim desenvolver aquilo que a revisão de 1989 permitiu. Nestes últimos 28 anos observaram-se duas tendências importantes. O reforço do papel dos privados no sistema de saúde, na prestação de serviços, na construção de equipamentos (e.g. hospitais privados e públicos em parceria público-privada) e na gestão de alguns equipamentos públicos (em PPP). Por outro lado uma gestão mais descentralizada do SNS (com a ACSS e as ARS) e a introdução de uma lógica de empresarialização nos hospitais públicos (hospitais EPE) com contratualização do seu financiamento. Passadas quase três décadas justifica-se fazer um balanço e revisitar as “bases” da saúde.
2, Uma análise crítica, ainda que breve, da LBS de 1990 pode ser feita quer a um nível económico, quer político-ideológico. A Lei de Bases de 1990 (LBS90) é herdeira da teoria económica dos anos 60. O direito à proteção da saúde — com os princípios de universalidade, generalidade, tendencial gratuidade — conjugado com a coexistência de instituições públicas (do SNS), privadas e do sector social, opera uma separação clara entre o financiador e o prestador do serviço de saúde. Se o financiador é sempre, em parte, o Estado (via OE para garantir a universalidade de acesso) o prestador pode ser qualquer das entidades referidas. O que é importante, diz a LBS90 é que o Estado defina a política de saúde e exerça nuns casos (SNS) o papel de “regulamentação, orientação, planeamento, avaliação e inspeção” (Base VI nº2.) e nos casos das entidades privadas o de fiscalização (Base I nº4.). Aparte isso, as regras de financiamento de todas as entidades (do SNS, privado e social) são tendencialmente as mesmas (Base XII nº 5) bem como o controlo de qualidade e os níveis de exigência (Base XII nº 6). Resumindo, o modelo implícito na LBS90 era a da possibilidade de competição entre entidades dos três sectores na prestação de cuidados de saúde, numa lógica custo-benefício. Na realidade afirma-se que “O Ministério da Saúde e as administrações regionais de saúde podem contratar com entidades privadas a prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde sempre que tal se afigure vantajoso, nomeadamente face à consideração do binómio qualidade-custos, e desde que esteja garantido o direito de acesso.” (Base XII nº 3). Parece, aparentemente, muito razoável. Argumentam alguns, sobretudo os que consideram que a prestação de cuidados de saúde é feita num mercado competitivo, que as instituições privadas são mais eficientes que as públicas e que assim, prestando o serviço pelos privados poupa-se dinheiro dos contribuintes. Será assim?
3. Na década de 70 há um desenvolvimento muito importante na teoria económica relevante para este debate. G. Akerlof, A. Spence e J. Stiglitz desenvolvem a teoria da informação assimétrica (pela qual ganhariam o Nobel do Banco da Suécia em 2001). Mostram que mercados com informação assimétrica são ineficientes, geram problemas de seleção adversa e risco moral. Hospitais privados podem gerar incentivos para ficar com doentes com patologias mais baratas de tratar orientando os doentes com problemas mais complexos e dispendiosos para hospitais públicos. O risco moral, que pode ser minorado, mas nunca é devidamente combatido pelo desenho de um contrato entre a ACSS e o Hospital privado, pode levar a uma indução artificial da procura (não por acaso a proposta de LBS do governo Base XV nº2 refere a necessidade de transparência nestes domínios). A informação assimétrica (o Estado financiador tem muito menos informação sobre os custos e a qualidade de produção do serviço do que prestador privado) tem como corolário uma dificuldade acrescida de regulação e de fiscalização que se traduz em custos adicionais de monitorização de contratos (custos de transação). Isto significa que do ponto de vista informacional a relação Estado-Hospital privado é mais assimétrica e imperfeita que a relação Estado-Entidade Pública Empresarial (EPE). Mesmo do ponto de vista do custo para o contribuinte, em termos macro, a comparação prestador privado e público, deve considerar que para além da (discutível) maior eficiência do privado, existe, para além dos custos de transação, a remuneração do capital (lucros). Os objetivos do hospital privado são diferentes dos do público. Ao nível micro, as implicações da assimetria de informação são também relevantes. A dificuldade de implementação de sistemas como os vales de cirurgia reside em que para além dos valores associados à cirurgia (tabelados) tem de existir um controlo de qualidade (que existe para tempos de recobro), mas que tem sempre dimensões difíceis de observar. Para além disso os níveis de garantia e acompanhamento em situações críticas é sempre menor no privado funcionando o hospital público como o “último recurso”.
4. As propostas da nova lei de bases da saúde, incorporam perspetivas político-ideológicas distintas sobre o papel do sistema de saúde, que não há espaço para discutir aqui. A LBS deve assentar numa análise económica do séc. XXI e não nas velhas teorias económicas da década de 60. O sector privado tem um papel a desempenhar não em concorrência com o público, como defende o PSD, mas em cooperação e de forma supletiva para cobrir as necessidades do público, acautelando todos os problemas originados pela assimetria da informação e garantindo o direito universal de acesso. Deve antecipar os incentivos que gera nos intervenientes no sistema de saúde e das opções que têm à sua disposição. Por exemplo, defender a exclusividade dos médicos no SNS com salários relativamente baixos no sector público, tem algum grau de realismo? Parece-me óbvio que não. A nova Lei de Bases da Saúde deve ter algum grau de generalidade para perdurar mesmo com diversas maiorias políticas, mas não pode ser tão genérica que seja inútil.