As teorias económicas e as investigações empíricas parecem provar (o parecem é porque realmente nunca sabemos) que a globalização, com liberdade de circulação de bens, serviços, capital e pessoas, se traduz num crescimento mais significativo do que o proteccionismo. O mundo, globalmente, fica mais rico, embora alguns grupos possam perder. O mesmo, com as devidas adaptações, se verifica com as empresas que procuram minimizar os custos produzindo cada uma das suas peças nos sítios onde é mais barato, para montarem depois o puzzle.
A crise financeira de 2007/08 primeiro, a pandemia de forma mais dramática e os conflitos na Ucrânia e agora no Médio Oriente vieram abalar as convicções na globalização e no liberalismo e alterar as práticas dos governantes e até dos próprios gestores e accionistas. E eis que estamos a assistir à desglobalização, ou ao reajustamento da globalização, e ao regresso da política pública industrial, sinónimo de proteccionismo.
Estamos perante uma escolha entre mais rendimento ou mais segurança económica e, neste momento, os governos estão a escolher mais segurança, tal como algumas multinacionais. Claro que, como alerta a The Economist, o crescimento global vai ser pior e se Donald Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos e aplicar a sua proposta de tarifa de 10% sobre todas as importações, a situação ainda será pior. Os cidadãos em geral só terão de estar conscientes de que estão a escolher aumentar menos o seu rendimento em troca do que se perceciona como mais segurança económica.
O caso da salvação da Efacec racionaliza-se de certa forma nesta tendência que tem vindo até a ser defendida pela própria União Europeia. O Resiliente do PRR não é mais do que tratar de criar, no espaço da União Europeia, uma base industrial mínima que a torne menos dependente das importações – depois de ter verificado com a pandemia de que nem máscaras produzia. E é neste contexto que vemos também as entidades europeias a serem muito mais flexíveis em matéria de ajudas de Estado.
O argumento de distorção da concorrência, que serve para criticar a salvação da empresa portuguesa, tem sido desvalorizado em termos gerais na UE e, neste caso em particular, a venda obteve as luzes verdes necessárias, designadamente da toda poderosa direcção-geral europeia da concorrência que tantos problemas gerou a Portugal, no domínio da banca, na era da troika.
O fundo alemão Mutares compra por 15 milhões uma empresa onde o Estado meteu 390 milhões de euros – ou seja, os contribuintes pagaram para vender a Efacec. E, com elevada probabilidade, não vão recuperar o investimento, mesmo tendo em conta o acordo segundo o qual reverte para os cofres públicos 66% de uma futura venda. (Ver os detalhes do negócio neste artigo de Alexandra Machado).
O problema político, que está a servir de base para as críticas da oposição à direita, está fundamentalmente relacionado com aquilo que o Governo não explicou nem disse. Não explicou porque nacionalizou em Junho de 2020 nem nunca disse que os contribuintes portugueses poderiam perder dinheiro com essa decisão. As críticas não são muito diferentes das que ouvimos quando foi preciso evitar que os bancos fossem à falência, com montantes significativamente mais elevados. Como se sabe, o Novo Banco tem uma conta que é da ordem dos 3900 milhões de euros e o Banif, na altura em que a sua parte boa foi vendida por 150 milhões de euros ao Santander, teve um custo, líquido do valor da venda, de três mil milhões de euros, muito mais elevado em termos relativos do que o BES. Em qualquer dos casos o que na prática se fez foi pagar para vender – os famosos e estranhos preços negativos. Faltam aqui as contas do BPN.
Os bancos são diferentes, dir-se-á, por causa do poder destrutivo que a sua falência possui e como foi demonstrado pelo colapso do Lehman Brother’s que era apenas um banco de investimento. Mas as indústrias nestes tempos em que vivemos podem também ser diferentes, não por, neste caso, terem um poder destrutivo como o dos bancos, mas por aquilo que podem gerar.
Colocando de parte as críticas político-partidárias, relacionadas com a falta de transparência e de coragem para dizer a verdade por parte do Governo, a questão que se coloca é: devia o Executivo ter deixado falir a Efacec? E quando? Em 2020, em plena pandemia, quando os problemas de Isabel dos Santos inviabilizaram o financiamento à empresa? Ou mais tarde, quando falhou a primeira privatização? Ou agora, quando viu que os contribuintes teriam de lá colocar e eventualmente perder quase 400 milhões de euros para a empresa continuar viva?
Olhar para a empresa é fundamental na resposta a estas perguntas. A Efacec tem sido sobretudo uma empresa mal gerida. Primeiro com o grupo Mello, quando iniciou uma expansão megalómana, perseguindo a utopia de a transformar numa multinacional portuguesa. Depois, vendida a Isabel dos Santos que quis fazer dela uma empresa ao serviço dos seus interesses. A seguir entrou no turbilhão dos ativos tóxicos da empresária angolana e ficou sem financiamento.
Pode sempre argumentar-se que a empresa não tem valor económico, mas isso não parece corresponder à verdade. É fornecedora da REN, tem sido e vai continuar a ser fundamental para a mobilidade elétrica e, em geral, para a transição energética. E, entre outros projetos, ganhou recentemente o concurso de modernização da rede elétrica em França. Além disso, mais de metade dos seus cerca de dois mil trabalhadores são engenheiros e tem ainda a ligações, como cliente, a mais de 2400 pequenas e médias empresas.
O Governo deu ênfase ao efeito social que teria o encerramento da empresa, especialmente no Norte e depois do fecho da refinaria de Matosinhos. O problema nem seriam os engenheiros, que encontrariam facilmente trabalho, seriam antes os outros trabalhadores e as pequenas e médias empresas à volta dela. Mas se o problema fosse social existiriam mecanismos melhores do que a salvação da empresa para o resolver. O valor económico da empresa não deve ser desvalorizado e é nele que se encontra a principal justificação para o que o Governo fez. Num país que se apoia no turismo, em que escasseia a indústria, deixar cair a Efacec seria um erro. Sim, na perspetiva da destruição criativa, outras empresas poderiam surgir. O problema está no ‘poderiam’ e no tempo que levariam a criar a massa crítica que a Efacec já tem. Uma empresa é muito mais do que juntar pessoas e máquinas.
A avaliação não pode ser feita apenas na perspetiva financeira, do dinheiro que entra e que sai. Percebe-se que assim seja, pelos erros cometidos no passado, nomeadamente no sector têxtil, quando se andou a salvar empresas inviáveis. Mas não parece ser este o caso.
Aparentemente estamos perante uma empresa que tem valor económico, mas da qual até agora ninguém conseguiu retirar valor financeiro, em suma, que ganhasse dinheiro. Um fundo com o perfil da Mutares e com origem num país como a Alemanha, com genes industriais e de pequenas e médias empresas, pode de facto ser a chave para que finalmente o valor económico se transforme em financeiro.
Claro que o Governo tem e deve responder politicamente, nomeadamente para se perceber se fez o que devia para minimizar as perdas para os contribuintes. Mas a prazo existem condições para que estes mesmo contribuintes não se arrependam de ter deixado a empresa viver. Nem sempre o mercado encontra as melhores soluções sem a mão visível do Estado e o momento que vivemos parece apontar para a necessidade de actuações mais interventivas.
Vivemos uma era em que a incerteza e a instabilidade recomenda prudência e uma presença das políticas públicas mais ativa do que nos tempos de abertura dos países, de paz e de globalização, que hoje parece estar a caminhar para o passado.
Não sermos os únicos, a ter esta actuação mais interventiva na economia, não é uma justificação em si, mas ajuda-nos a perceber que estão a existir mudanças. Se algum problema estamos a ter, vendo o que se passa noutros países europeus, é estarmos menos atentos à reindustrialização realizada com a mão do Estado. Depois da crise financeira, da pandemia e agora com as duas guerras que nos cercam, a abordagem à economia será seguramente menos liberal – porque o liberalismo económico precisa de segurança para ser eficiente e equitativo.
Resiliência económica e política industrial podem bem voltar a ser expressões com peso nas políticas nestes tempos em que vivemos. Claro que o preço a pagar será menos crescimento económico, para mais segurança económica. É essa também a escolha que algumas multinacionais estão a fazer, menos lucro para maior segurança no abastecimento.