«What you are suggesting is unthinkable. The order of succession to the throne is determined by the Act of Settlement of 1701, not the wild and irresponsible whims of young princesses. The principle of undisturbed hereditary descent is a pillar of stability and perpetuity for the nation. (…) I would urge you to accept your position in life and to dismiss forthwith any childish notions about rewriting the rule books that it might better suit your character. We all have a role to play.»
The Crown, s03 e02

Uma das tentações mais perigosas da reflexão política é a da simplificação. O seu poder hipnótico passa por, apresentando causas e efeitos lineares, criar a ilusão de controlo, a ilusão de que podemos não só compreender, mas também condicionar tudo o que vai acontecendo à nossa volta. É este, por exemplo, o poder das ideologias. Enquanto narrativas simplificadas de termos e relações causais, elas parecem tornar o mundo mais inteligível. Trata-se, contudo, de uma fantasia, e a compreensão de um mundo cada vez mais complexo implica o esforço de, periodicamente, darmos um passo atrás e ganharmos distanciamento sobre os acontecimentos. Uma boa estratégia passa por revisitar os autores que ainda hoje influenciam o nosso modo de pensar e entender como os seus legados, muitas vezes contraditórios, se mantêm como discursos hegemónicos ou de resistência, ou como aparentes derrotados que vingam muito tempo depois.

Esta perspetiva permite, nomeadamente, iluminar os legados de John Locke e Jean-Jacques Rousseau. A vitória da democracia liberal significou a vitória de Locke e de um vocabulário centrado em direitos naturais, limitação do poder político, consentimento, representação, direito de resistência. E tal significou a derrota do modelo rousseauniano de participação, comunitarismo e poder político não limitado. Mas a segunda metade do século XX viu regressar o espírito de Rousseau, radicalizando o individualismo que caracteriza a modernidade e dando forma a fenómenos políticos radicados naquilo que podemos designar como a epistemologia do eu.

A epistemologia do eu resulta do legado de Rousseau que assenta no espírito de rebeldia de um eu interior que vive em permanente confronto com a sociedade exterior. Para o genebrino, o estado de absoluta liberdade e igualdade do ser humano – em linguagem contratualista, o estado de natureza – é o estado em que, vivendo sozinhos, somos autores das próprias leis e não dependemos dos outros. É quando passamos a viver em sociedade que perdemos, progressivamente, liberdade e igualdade naturais: não só deixamos de determinar as regras, como a vivência com o outro nos corrompe, destruindo a natureza do bom selvagem.

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Há, nesse sentido, em Rousseau uma luta constante com a sociedade e com os outros – e a sua biografia pessoal, retratada nas deliciosas Confissões, revela precisamente esta luta, num confronto permanente com a sociedade que o rodeia, com amigos de sempre que deixam de o ser, com um mundo que conspira constantemente contra ele. Mas o sentimento de atração que a sua leitura provoca é proporcional à sensação de desconforto que resulta do facto de Rousseau parecer um eterno adolescente, procurando a sua identidade na oposição constante aos outros. Permanecendo neste estado, nunca cresce, nunca amadurece, nunca aprende a viver num mundo que o antecede e que permanecerá após a sua morte.

É por esta razão que Rousseau é tão sedutor para aqueles que sentem desconforto com o mundo que os rodeia. E é este espírito rousseauniano que marca muito da política atual: a vontade de mudar o mundo de acordo com desejos pessoais, recuperando uma liberdade inicial à custa de impor aos outros uma vontade individual. A legitimidade dessa imposição residiria na experiência pessoal e individual que é superior à experiência coletiva – a epistemologia do eu prevaleceria sobre a epistemologia do nós.

Este modo de ver o mundo e a política apresenta, contudo, um sério problema: é que, ao centrar-se na ideia de que existe um eu interior que é puro e que se opõe a uma sociedade que deve ser alterada para servir as necessidades desse eu, leva-nos a desvalorizar as instituições, as regras, os consensos que nos antecedem. Se o mundo não respeita os nossos desejos interiores, então pior para o mundo, que se crie um mundo novo. Mas há algo de profundamente perverso na ideia de que as nossas vontades são moralmente superiores ou politicamente mais válidas do que instituições que sobreviveram durante séculos e que cumpriram, em sentido burkiano, a sua função. Há algo de perverso e infantil – mas também perigoso, porque nos impede de dar um sentido coletivo às decisões políticas, curiosamente em contradição com as próprias ideias de Rousseau. A vertigem do eu impede a prossecução de consensos em torno do nós.

Talvez faça sentido, por essa razão, recordar uma antiga lição: amadurecer significa encontrar um equilíbrio entre os nossos desejos pessoais (que marcam a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras sociais. Mas hoje parecemos condenados a uma sociedade de eterna adolescência, centrada em dinâmicas de vitimização que procuram mudar o mundo e as suas regras para que se adaptem ao eu de cada um. Mas lembremo-nos de que Rousseau morreu sozinho, revoltado com o mundo e enlouquecido pela ideia de que todos lhe queriam mal – uma experiência que, pessoal e coletivamente, talvez não queiramos repetir.