A ERC emitiu uma deliberação, a propósito da minha entrevista a Marta Temido, que me parece um atentado à liberdade dos jornalistas em democracia. Normalmente não faço declarações sobre as entrevistas que fiz, estão feitas e cada um encará-las-á livremente à sua maneira, mas a deliberação é tão grave que não pode ficar sem resposta.

As críticas da ERC são formuladas essencialmente em três pontos da sua deliberação: o 42, o 44 e o 45.

1. No ponto 44, a ERC diz que teci “comentários laterais a afirmações da entrevistada que se situam no plano da opinião e não no plano da factualidade”. Para sustentar esta afirmação extraordinária, a ERC invoca que, quando a entrevistada afirmou que “alguns (países) têm até situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”, eu terei replicado “por acaso, não creio”.

Fiquei muito espantado com esta citação, porquanto não proferi a declaração que a ERC me atribui. Existe realmente um trecho perto do final em que a entrevistada fala de países candidatos à adesão com “situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”. Ao ouvir isto, eu de facto disse algo, mas, ao contrário do que pretende a ERC, não foi “por acaso, não creio.” O que eu disse foi “o caso da Ucrânia”.

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Ou seja, eu não estava a fazer nenhuma réplica, estava só a nomear o caso de um país candidato à adesão à UE que vive de facto uma situação grave, a guerra, ilustrando exatamente o que a entrevistada estava a dizer. Oiça-se a entrevista aqui, a minha frase está aos 19 minutos e 01 segundos.

Que a ERC me atribua, como base para me criticar, declarações que jamais proferi afigura-se-me absolutamente surreal.

2. Já no ponto 45, a ERC parece considerar que a afirmação por mim efetivamente proferida na entrevista, “enfim, os dados que eu vi, vi”, é uma opinião. Lamento, não é uma opinião. É um facto. Eu de facto vi dados que mostram que Portugal foi ultrapassado por vários países no PIB per capita por paridade do poder de compra. Que eu vi isso não é uma opinião, é matéria de facto.

Ou seja, no ponto 45 a ERC está a fingir que uma afirmação factual é uma opinião para poder condenar um jornalista por estabelecer um facto. Isto é novilíngua orwelliana. Se se chamar paz à guerra, abundância à fome ou opinião a um facto, então a Rússia está em paz, as pessoas que não comem vivem em abundância e dizer que eu vi uma coisa é uma opinião condenável.

Está a ser feita aqui uma total subversão da linguagem para atingir objetivos específicos, e gravemente antidemocráticos, quais sejam atacar o direito dos jornalistas de fazerem as perguntas que, em liberdade, consideram editorialmente adequadas e procurarem estabelecer factos verdadeiros.

O mais importante são as implicações que esta deliberação tem para a atividade profissional dos jornalistas. À luz do ponto 45, os jornalistas em Portugal deixam de poder enunciar factos porque se acaso tais factos desagradarem à ERC esta terá o cuidado de os metamorfosear em opiniões para assim ganhar margem para censurar os jornalistas portugueses.

Isto é de grande gravidade. Os jornalistas do Observador, da Lusa, do Expresso, do Público, do DN, do CM, da SIC, da TVI, da Visão, da Sábado, da RR ou de qualquer outro órgão português de comunicação social já não podem dizer que viram uma coisa? Ou só os da RTP estão interditados de dizer que viram algo? E se os jornalistas em Portugal já não podem estabelecer um facto, o de que viram uma coisa, quais os factos que segundo a ERC podem transmitir ao público?

Já agora, estamos autorizados pela ERC a dizer que existe uma guerra na Ucrânia ou temos de lhe chamar “operação especial”, pois chamar-lhe guerra é afinal também uma opinião?

3. No ponto 42, a ERC argumenta que a entrevista em causa “é suscetível de prejudicar o direito de os telespectadores serem informados, conforme garante a Constituição” (não sendo constitucionalista, que eu saiba a Constituição não menciona os direitos dos “telespectadores” em parte alguma, mas se a ERC o diz…).

Este argumento, sublinhe-se, é outro atentado ao jornalismo e à liberdade. Na entrevista em causa, o direito dos telespectadores a serem informados nunca foi prejudicado. Os repiques que fiz nessa entrevista existiram justamente para garantir esse direito.

Para que se perceba tudo isto, e sob pena de me alongar, vou explicar o que foi atempadamente explicado à ERC. A entrevista em causa foi pensada em torno de uma temática que, sendo europeia e absolutamente central para a vida do país, nunca foi abordada com profundidade na campanha eleitoral para as Europeias: a questão da permanente dependência de Portugal em relação aos subsídios europeus e a possibilidade de perder liquidamente esses subsídios por força do alargamento que aí vem.

Esta entrevista iria durar dez minutos e assentava em 4 perguntas (dois minutos e meio de resposta para cada resposta):

1 — Acha que a subsidiodependência se tornou um vício para Portugal? Esta pergunta usava como ponto de partida uma declaração proferida pelo ex-ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva, segundo o qual “estamos muito viciados na subsidiodependência”; uma declaração da Comissária Europeia da Coesão e Reformas, Elisa Ferreira, de que “a boa estratégia é trabalhar para não depender de fundos”; e uma pergunta do ex-primeiro-ministro, António Costa, sobre quando poderia “levantar o cheque” do PRR. A pergunta partiu também de dados estatísticos relevantes, embora não mencionados na entrevista mas do meu conhecimento na altura, designadamente informações da Comissão Europeia de que no período 2014-2020 “Portugal é o país da UE onde os fundos comunitários têm um maior peso no investimento público (88%)” e de que “Portugal é o segundo país da UE onde os fundos europeus mais ajudam a reduzir disparidades.”

2 — Como se explica que ao fim de 39 anos de receção de fundos de coesão Portugal ainda “está dentro dos países atrasados” e esteja a ser ultrapassado por países que só entraram na União Europeia em 2004, e portanto estiveram menos tempo a receber esses fundos? Esta pergunta usava como ponto de partida uma declaração proferida nesses exatos termos pela mesma Comissária Europeia, Elisa Ferreira, a qual considerou “penoso” constatar que, após tantos anos a receber fundos de coesão, Portugal ainda “está dentro dos países atrasados”. De resto em entrevistas recentes, incluindo a Vítor Gonçalves na RTP, Elisa Ferreira voltou a insistir na mesma mensagem.

3 — Estamos preparados para o alargamento, quando Portugal, por força do alargamento, se tornar estatisticamente país rico e consequentemente deixar de ser recipiente líquido? Esta pergunta usava como ponto de partida uma declaração proferida pelo ex-ministro das Finanças, Fernando Medina, de que, com o alargamento, “de forma aritmética, Portugal passará rapidamente para o topo dos países mais ricos numa União alargada.”

4 — Como vamos fazer quando isso acontecer e quais as propostas da candidata para resolver estes desafios? Quando o segundo destes pontos foi suscitado, a entrevistada começou a questionar os pressupostos factuais das perguntas, o que fez a entrevista ganhar uma dinâmica própria. Vejamos a sequência:

JRS: Quatro dias depois da declaração de António Costa sobre se já podia ir ao banco para levantar o cheque com o subsídio…
MT: Isso foi uma graça.
JRS: … a comissária europeia Elisa Ferreira, no dia 20 de junho de 2021, portanto quatro dias depois, disse: “É penoso ver que Portugal, com estes anos todos de apoio, ainda está dentro dos países atrasados”. Ora o PS governou dois terços do tempo em que estivemos a receber estes subsídios, incluindo os últimos nove anos, e também…
MT: Oito.
JRS: Oito e meio, porque na verdade foi de 2015 a 2024, e portanto oito e meio.
MT: Mas foi novembro. 2015, mas foi novembro. Já agora, se queremos ser precisos.
(Nota: o período de governação foi de novembro de 2015 a abril de 2024, o que perfaz oito anos e quatro meses e alguns dias)
JRS: É verdade. Mas foi também ultrapassado por vários países da Europa mais pobres e que estiveram menos tempo a receber dinheiro da União Europeia. Como é que explica isto?
MT: Bem, antes do mais deixe-me dizer-lhe que isso não revela designadamente aquilo que foi a nossa diferenciação num aspeto que eu estava a referir, que era a diferenciação em termos de competências, por exemplo. Nós, nos tais oito anos que refere, passaram a ser mais dez por cento dos portugueses com 20 anos, por exemplo, a frequentar o ensino superior.
(Nota: isto em nada responde à pergunta que foi colocada, designadamente como explica que, estando a receber fundos europeus desde 1985, continuemos “dentro dos países atrasados” quando outros países que entraram bem mais tarde, em 2004, já nos ultrapassaram. Esta resposta evasiva obrigou-me a insistir na mesma questão, embora formulando-a de forma diferente, o que fiz ao salientar que a ultrapassagem de Portugal pelos países mais pobres nos tornou mais pobres em relação a eles).
JRS: Mas continuamos mais pobres…
MT: Acha? Olhe que não.
JRS: Fomos ultrapassados pela Estónia, pela Lituânia, pela Polónia…
MT: Olhe que não. Olhe que não. Olhe que não. Olhe que não. Olhe que não. Olhe que não. Olhe que não (nota: disse-o um total de 8 vezes).
JRS: Está a negar estes factos?
MT: Quer que lhe mostre aqui as minhas cábulas?
JRS: Está a negar estes factos?
MT: Estou, estou.
Portanto, temos aqui a entrevistada, não só a não responder à pergunta que lhe foi feita (como explica que ao fim de tanto tempo Portugal não tenha saído do grupo dos países atrasados e até tenha sido ultrapassado por países mais pobres com menos tempo a receberem fundos comunitários) como a negar mesmo a existência de ultrapassagens, tornando-nos assim mais pobres relativamente aos que nos ultrapassaram.

Já em janeiro de 2022 o então primeiro-ministro, António Costa, tinha sido por três vezes confrontado com a questão por outro entrevistador da RTP. Na altura a pergunta foi: “Sendo verdade que o país cresceu entre 2016 e 2019, como não tinha crescido ainda este século, convergindo até com a média europeia, também é verdade que foi ultrapassado no crescimento por vários outros países. Como é que o senhor explica que Portugal tenha sido ultrapassado por dez países, sensivelmente?” O então primeiro-ministro em momento algum negou estes factos, aliás confirmando-os implicitamente. Já a entrevistada nesta ocasião negou-os, como vimos.

Ora a este propósito, o Polígrafo fez na mesma noite desta entrevista um fact check em que concluiu que, “em 2021, Portugal caiu para a 21ª posição do ranking do PIB per capita (em PPC), tendo sido ultrapassado por seis países na comparação direta com 2001” (bold no texto original do Polígrafo).

Se a entrevistada tivesse dito que, embora o país tenha sido de facto ultrapassado por vários outros países, os dados provisórios relativos a 2023 sugeriam que tinha recuperado posições, pois em princípio reultrapassara alguns desses países, estaria inteiramente correta. Porém, a entrevistada negou que tenha sequer havido ultrapassagens, dizendo sucessivamente “olhe que não”. Ademais, questionada diretamente se estava a negar a existência de ultrapassagens, respondeu: “estou, estou”.

Ou seja, de repente fui confrontado com uma entrevistada que fugia a responder à pergunta e que, quando submetida a repique e forçada a encarar a pergunta, negou o seu pressuposto factual e fê-lo com prestação de informação factualmente falsa. O que deve fazer um entrevistador quando o entrevistado foge à pergunta? Deve deixá-lo dizer o que quer, ao arrepio das perguntas? E o que deve fazer o entrevistador quando o entrevistado começa a prestar declarações factualmente falsas? Deve deixar passar isso em claro?

Segundo a ERC, pelos vistos as declarações factualmente falsas não podem ser sujeitas a contraditório nem repique porque isso supostamente põe em causa o direito constitucional dos “telespectadores” ao acesso à informação. Lamento este exercício orwelliano. O entrevistador não só deve recordar ao entrevistado a pergunta original como não pode deixar passar em claro informação factualmente falsa.

Nos Estados Unidos, isso faz-se dizendo abertamente que o entrevistado está a dizer coisas falsas. Basta ler os textos jornalísticos americanos para ver a forma como lidam com as declarações falsas de Donald Trump, como neste exemplo da CNN.

No meu caso, não acusando ninguém de prestar declarações falsas, segui o caminho do repique num esforço para estabelecer os factos verdadeiros e garantir assim o direito de os portugueses acederem a informação verdadeira. Note-se que o entrevistado pode e deve ter tempo para responder, mas não em resposta a uma pergunta que não foi feita e jamais prestando informação que não é factualmente verdadeira.

A entrevista não é um tempo de antena em que o entrevistado diz o que quiser independentemente das perguntas do entrevistador. Foi-lhe perguntado como explicava que Portugal ao fim de tantos anos permanecesse no grupo dos “países atrasados” e fosse ultrapassado por uma série de países mais pobres no PIB per capita, e a entrevistada falou sobre o desenvolvimento de competências e o ensino superior. Terá sem dúvida total razão, sublinhe-se, mas não respondia à pergunta. Ou seja, perguntou-se-lhe A e ela falou sobre B.

Não houve nenhum perigo de “prejudicar o direito dos telespectadores a serem informados”, o que houve foi uma insistência na pergunta e um repique sempre em torno da mesma questão, formulada de diferentes maneiras, numa tentativa persistente de obter uma resposta à pergunta de modo a justamente garantir “o direito dos telespectadores a serem informados”.

Note-se que se a entrevistada tivesse dito que não queria responder à pergunta, isso seria evidentemente respeitado. Mas não o fez. Em vez de responder diretamente ao que lhe era perguntado, fugiu à resposta. E quando fui a repique, a entrevistada produziu declarações factualmente falsas.

No meio do repique, e quando a entrevistada ia dizendo que a economia estava a crescer dez vezes mais nos últimos oito anos do que crescemos nos primeiros dez anos do século XX (nota: evidentemente que se referia ao século XXI), que isso teve uma repercussão direta na vida dos portugueses, que o crescimento foi feito à custa de melhores salários, de melhores salários médios, fiz uma observação factual relacionada com a pergunta original, a qual continuava a não ser respondida:
JRS: Peço desculpa, os portugueses estão a emigrar, a classe média está a emigrar.
MT: Não é verdade.
JRS: Não é verdade?
MT: Não, não é.

Aqui temos a entrevistada a negar que os portugueses estejam a emigrar. Ora consultando os dados da emigração na altura conhecidos, fornecidos pela Fundação Francisco Manuel dos Santos citando o INE e a PORDATA, constatava-se que não só a emigração em 2022 foi quase o dobro da de 1960 como estava acima do período pré-crise das dívidas soberanas.

Segundo os mesmos dados então conhecidos (não uso a emigração temporária por falta de dados estatísticos entre 2004 e 2010, o que dificulta as comparações), em 2005 a emigração permanente foi de 6.360, em 2006 de 5.600 e em 2007, ano em que eclodiu a crise do subprime, foi de 7.890. Disparou no ano seguinte para 20.357 e foi subindo no período da troika até atingir um pico de 53.786 em 2013, tendo começado a descer em 2014 para 49.572 e continuado a descer nos anos seguintes até atingir em 2021 os 25.099, abaixo do período da troika mas acima do período pré-troika. Em 2022 foi de 30.954, o que sugere uma aceleração na emigração permanente.

Ou seja, novamente fui confrontado com a prestação de informação factualmente falsa. O que ditam as regras das entrevistas numa situação destas? Registe-se a frase seguinte, que a entrevistada proferiu após novo repique:
MT: Continua a haver emigração, mais do que aquela que desejaríamos.
(Nota: antes ela tinha declarado perentoriamente que “não é verdade” que os portugueses estejam a emigrar. Perante o repique, recuou e admitiu que os portugueses continuavam afinal a emigrar em números acima do desejado. Este recuo, e a consequente reposição da verdade, só foi possível porque não deixei passar em claro a informação factualmente falsa que foi prestada e fui a repique.)

Por fim, de salientar que, após todos estes repiques, e só após os repiques, a entrevistada deu finalmente uma resposta à pergunta original (como se explica que vários países, mais pobres e há menos tempo na União Europeia a receberem fundos comunitários, ultrapassaram Portugal). A entrevistada explicou enfim que isso se deveu a esses países estarem “muito mais bem posicionados” na “localização geográfica” e “tinham sobretudo uma diferenciação que nós não tínhamos”.
(Nota: afinal sempre houve ultrapassagens, exatamente o pressuposto da pergunta e que no início foi repetidamente negado com “olhe que não” dito 8 vezes e com um “estou, estou” a negar estes factos.)

Quando passei para a terceira questão, a do alargamento e das respetivas consequências para Portugal, designadamente a perspetiva de acabar a receção líquida de dinheiro europeu, repetiu-se o questionamento dos pressupostos da pergunta. Eis a sequência:
JRS: Vários países preparam-se para entrar na União Europeia e os estudos dizem que vamos deixar de ser recetores líquidos dos fundos comunitários…
MT: Não, não dizem (nota: não deixou formular a pergunta).
JRS: Não dizem?
MT: Não, não dizem. Não há nenhum estudo que diga isso.

A entrevistada estava aqui a negar que haja estudos sobre o impacto para Portugal do alargamento da União Europeia a indicar que o país vai deixar de ser recetor líquido dos fundos da União Europeia.

Ora, o Conselho Económico e Social publicou um estudo coordenado por Sandra Fernandes, professora da Universidade do Minho, com a participação de Nuno Crespo, Carlos Gaspar e Bruno Cardoso Reis, “onde se traça um cenário repleto de desafios para a economia portuguesa, que incluem o futuro alargamento da União Europeia” (Público, 6 de março de 2024). Sobre as conclusões do estudo, a investigadora, citada pelo Público, declarou: “O que é importante ter em conta relativamente ao impacto do alargamento na economia portuguesa é saber que vai doer (…) Portugal pode sofrer imenso com este alargamento da UE. A sua economia vai sofrer”.

E vai sofrer e doer como? O Expresso de 25 de outubro de 2023, cobrindo o congresso da Ordem dos Economistas, publicou uma notícia com o título “Medina alerta para impacto para Portugal do alargamento a leste da União Europeia”, com o subtítulo “Para o ministro das Finanças o alargamento da União Europeia a leste ‘constitui um dos principais desafios sobre o qual o país não tem refletido de forma suficiente e aprofundada’.”

O Expresso citou estas palavras do então ministro das Finanças, Fernando Medina: “Só de forma aritmética, Portugal passará rapidamente para o topo dos países mais ricos da União alargada”. O jornalista que cobriu o evento noticiou: “segundo o governante, o processo de alargamento estará associado a uma integração da população ‘muitíssimo’ significativa, ao mesmo tempo, na generalidade, ‘com rendimentos bastante abaixo da média da União’.”

A frase crucial do então ministro das Finanças é que, “só de forma aritmética, Portugal passará rapidamente para o topo dos países mais ricos da União alargada”. O que Fernando Medina estava a dizer com isto, evidentemente baseado em estudos que o demonstravam, é que, ao entrarem muitos países pobres na União Europeia, Portugal passará aritmeticamente para o grupo dos países ricos, o que tem como consequência, à luz das atuais regras, que deixará automaticamente de ser um recipiente líquido dos fundos comunitários.

Perante declarações que podiam induzir em erro, vi-me de novo obrigado a ir a repique:
JRS: O anterior ministro das Finanças, Fernando Medina, indicou que Portugal não se está a preparar para a situação em que iria perder estes fundos…
MT: Situação de risco, não situação efetiva.

Aqui a entrevistada começou por declarar que os estudos “não dizem” que Portugal irá deixar de ser recipiente líquido, quando o próprio ministro das Finanças já tinha revelado que a passagem de Portugal para o topo dos países mais ricos é uma consequência aritmética do alargamento, o que implica que o país deixará automaticamente de ser recipiente líquido.

Só perante o repique é que a entrevistada recuou e concedeu que se está afinal em “situação de risco”, o que, não correspondendo exatamente às revelações de Fernando Medina (que dava implicitamente tal situação como certa), não é factualmente inexato. Note-se sobretudo que se não houvesse repique, a informação que induzia em erro prevaleceria e o público ficaria na convicção de que nada indica que está em causa a perda do estatuto de recipiente líquido dos dinheiros comunitários.

A ERC deliberou que a entrevista se “afastou do registo de factualidade”, mas como não o conseguiu demonstrar com uma frase minha, pois não encontrou nem uma única, decidiu praticar ilusionismo e atribuir-me declarações que de facto não proferi, fingir que o simples estabelecimento de factos eram afinal opiniões condenáveis e deixar implícito que declarações falsas não podem ser contraditadas.

Que fique claro: as regras das entrevistas políticas determinam que um entrevistador tem de exercer um esforço ativo de evitar fugas às perguntas, de confrontar o entrevistado com dados factuais que contraditam a sua narrativa, de impedir informação factualmente falsa e de clarificar informações que podem induzir em erro. Fazê-lo não é, ou não deveria ser, nada de anormal numa democracia liberal, trata-se de um exercício editorial de espírito crítico imprescindível na atividade jornalística – e que, se coartado, transforma os jornalistas em meros porta-microfones, à maneira de certos regimes.

Não houve nenhuma ação para impedir a entrevistada de prestar esclarecimentos quando ela estava a responder efetivamente às perguntas. Se os repiques forem considerados censuráveis, conceito próprio de Estados autoritários, isso terá como consequência desencorajarem-se os repiques no jornalismo, o que, a ser levado a sério, terá efeitos desastrosos na livre prática jornalística e no papel de contrapoder exercido pelos jornalistas numa democracia liberal. Os repiques nestas entrevistas constituíram um esforço para impedir respostas evasivas a perguntas concretas, e também um esforço para obter respostas factualmente verdadeiras ou que não induzissem em erro.

Em suma, o problema desta entrevista não foi colocar em causa o direito constitucional dos telespectadores à informação, foi o facto de a entrevistada evitar o tema e, quando forçada a encará-lo, negar informação factualmente verdadeira ou prestar declarações factualmente falsas ou que induziam em erro, o que inevitavelmente obrigou a repique.

Note-se que não se está aqui a dizer ou sequer insinuar que a entrevistada estava a prestar declarações falsas consciente e deliberadamente. É perfeitamente plausível que, decorrente da situação de improviso, a entrevistada não se tivesse conseguido exprimir bem ou até que não estivesse devidamente informada sobre os factos em questão. Independentemente disso, no entanto, a informação prestada não estava a ser, nestes pontos, factualmente exata, o que eu não podia ignorar e que exigiu os sucessivos repiques – os quais, aliás, permitiram à entrevistada repor a factualidade exata.

O problema é o seguinte: devem os entrevistadores formular perguntas e depois alhear-se das respostas, deixando conscientemente os entrevistados ignorarem as perguntas ou proferirem declarações factualmente falsas ou que induzem em erro? Pelos vistos, para a ERC sim. Pois não aceito isso. Quando confrontado com não resposta às perguntas e/ou declarações factualmente falsas ou que induzem em erro, é dever do entrevistador ir a repique, mesmo que tenha de o fazer muitas vezes. Isso faz parte das regras da entrevista.

O entrevistado pode e deve prestar esclarecimentos, mas convém que o faça em resposta a perguntas efetivamente feitas – só assim estamos perante esclarecimentos. Caso contrário não é entrevista, é tempo de antena; faz-se uma pergunta, na resposta o entrevistado faz (ou não) uma breve referência à pergunta (para que não se diga que não respondeu) e depois põe-se a falar sobre o que muito bem entende e o entrevistador não o pode interromper porque isso seria “prejudicar o direito dos telespectadores a serem informados”. Uma tal interpretação afigura-se muito perigosa e requer máxima cautela.

Compreendo que nas entrevistas políticas se desencadeiem paixões, e que as pessoas da ERC, sendo humanas, a elas não sejam imunes, mas é preciso o maior cuidado nestas questões. Veja-se, por exemplo, que menos de dois meses antes desta entrevista no Telejornal a Marta Temido, ex-governante do PS, entrevistei no Telejornal Miranda Sarmento, atual governante da AD. Acontece que as perguntas e repiques então feitos sobre as promessas de baixa do IRS obtiveram revelações que conduziram ao primeiro grande embaraço do atual governo da AD.

Naturalmente que, por ocasião da entrevista a Miranda Sarmento, os apoiantes da AD não terão ficado contentes com a entrevista e os do PS terão ficado satisfeitos, da mesma maneira que, por ocasião da entrevista a Marta Temido, a situação se inverteu. É da natureza das paixões e temos de o aceitar, mas isso não nos pode inibir de fazer as perguntas que resultam de juízo editorial, sempre subjetivo, é certo, mas uma prerrogativa inegociável dos jornalistas, aliás indispensável para a qualidade da democracia. Pôr essa prerrogativa em questão – mesmo que se finja que não se está a pô-la em questão – coloca-nos no caminho do silenciamento.

Convém recordar que, em 2021, a ERC emitiu uma deliberação que veio precisamente ao encontro das posições aqui expressas, sublinhando, e muito bem, ser “compreensível que o exercício do contraditório assuma especial importância na entrevista política”, pois “trata-se, com efeito, (de) uma forma de comunicação com elevada mediação jornalística, bem distinta do exercício do direito de antena”, sendo por isso “expectável que, na entrevista, o jornalista mobilize recursos de controlo da situação: ‘(i)ntervenções corretivas, interrupções de raciocínio, recusa dos percursos argumentativos, contestação de afirmações, reiteração do ponto de vista, mudança de assunto e insistência são exemplos de atos verbais empregados para o controle jornalístico da fala política em entrevistas não editadas’ (Gomes, 2012)”. E “em particular, na entrevista política em contexto eleitoral, a autoridade exercida pelo jornalista serve as finalidades de ‘(a) fazer questões que permitam ao público obter do político toda a informação política necessária para uma decisão eleitoral qualificada; (b) impedir que o político manipule a audiência com respostas inconclusivas ou falsas, informações distorcidas sobre si ou sobre os adversários ou simplesmente produza mais propaganda’ (ibid., p.11).”

Exatamente o caso em apreço.