O meu romance O Jardim dos Animais com Alma anda a agitar as águas da pecuária. Ainda bem. Os produtores e respetivas associações já me dirigiram vários ataques em textos que têm o condão de alimentar o debate sobre este assunto. Excelente. As ideias e os problemas existem para serem discutidos. Já a minha resposta aos argumentos dos produtores está no meu romance – e remeto-os para a respetiva leitura.

Acontece que o presidente da Federação dos Suinicultores, David Neves, publicou um texto no Observador que vai muito para além de um debate normal sobre a cognição animal, a pecuária e as alterações climáticas. Usando uma declaração minha a propósito dos meus romances O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau, David Neves resolveu dizer que a minha “grande referência moral” é Hitler e que eu estou “equiparando judeus a porcos”. Chegou ao ponto de afirmar que para mim “é um ato de humanismo gasear seres humanos” e que eu tenho “um discurso antissemita travestido de estratégia comercial”.

Estas declarações são graves, difamatórias e lamentáveis, e deveriam envergonhar quem as produz. A vida ensinou-me que só precisa de recorrer à ofensa quem não tem outros argumentos. Não alimento a menor ilusão de que David Neves queira verdadeiramente ser esclarecido sobre o que eu realmente disse e escrevi sobre o Holocausto, pois sei bem que os seus insultos não passam de mero expediente, discurso de ódio lançado por quem sente que lhe estão a tocar no negócio e para quem vale tudo, incluindo a calúnia. Este texto não é pois destinado a David Neves, mas aos leitores do Observador.

Comecemos pela tentativa de me associar a uma suposta desculpabilização do Holocausto. Em causa está o extrato descontextualizado de uma entrevista que dei no ano passado a propósito dos meus romances O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau. Durante uma explicação sobre a forma gradual como os nacional-socialistas tomaram a decisão de exterminar os judeus, culminei dizendo: “A certa altura há alguém que diz: ‘Eh pá, estão nos ghettos, estão a morrer à fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?’.”

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Num ato que me abstenho de qualificar, o jornalista Carlos Vaz Marques resolveu isolar esta frase e metê-la na Internet, proclamando aos quatro ventos que eu estava a defender que o gaseamento dos judeus foi um ato humanitário. Como se pode dizer um disparate destes é coisa que me deixa embasbacado, pois não se compreende que se confunda uma citação com uma opinião. Eu estava a citar.

Se eu noticiar que quem se opõe à vacinação diz que “a vacinação é perigosa”, isso significa que euacho que a vacinação é perigosa? Quando um jornalista ou um investigador faz citações não é porque concorda ou discorda, mas porque essas citações expõem o ponto de vista de alguém. Alguém que não eu. Citar não é validar. Faz-me confusão que uma coisa tão elementar não seja compreendida.

Mas então quem estava eu a citar? Leia-se este documento enviado de Poznan a Adolf Eichmann a 16 de julho de 1941 pelo oficial SS Rolf Hoppner: “Existe este inverno o perigo de não se conseguir alimentar todos os judeus. Dever-se-ia considerar seriamente se não seria uma solução mais humana eliminar os judeus, designadamente os que não conseguem trabalhar, através de um agente de morte rápida. Seria melhor do que deixá-los morrer à fome.”

Este documento é de tal modo relevante que é citado por Hannah Arendt em Eichmann in Jerusalem e por um grande número de historiadores especializados no estudo do Holocausto. Fazendo um rápido apanhado, constata-se que entre os historiadores que valorizaram o documento Hoppner estão Raul Hilberg em Documents of Destruction, Paul Bartrop e Michael Dickerman em The Holocaust – An Encyclopedia and Document Collection, Donald McKale em Hitler’s Shadow War – The Holocaust and World War II, Nicholson Baker em Human Smoke – The Beginnings of World War II, The End of Civilization, Michael Robert Marrus em The Nazi Holocaust – The Final Solution, Hans Mommsen em “Die Realisierung des Utopischen: Die ‘Endlosung der Judenfrage’ im ‘Dritten Reich’”, entre muitos outros, e sobretudo Christopher Browning, o maior especialista mundial sobre as etapas que conduziram ao Holocausto, em The Origins of the Final Solution – The Evolution of Nazi Jewish Policy, 1939-1942 e em The Path to Genocide – Essays on Launching the Final Solution. Browning observou que desde Mommsen que o documento Hoppner era encarado como uma maneira de naquele momento se “racionalizar o assassínio em massa como uma alternativa mais ‘humana’”[1] à morte pela fome nos ghettos.

Está claro agora?

É importante sublinhar que o rabino Shlomo Pereira, professor universitário nos Estados Unidos e especialista no Holocausto, autorizou-me a citá-lo a dizer que estava “pasmado” com a polémica e que tinha “a convicção imediata de que quem comenta não leu os livros”. Ele fez uma apreciação sobre as obras em causa que, de tão esclarecedora, vale a pena ver neste link.

A distorção caluniosa das minhas palavras desencadeou as habituais correntes de ódio, de que o texto de David Neves é apenas o último exemplo. Levados ao engano por esta campanha de difamação, alguns espectadores apresentaram queixa contra mim à ERC. Esta abriu um inquérito para apurar os factos, mas curiosamente as suas conclusões não foram na altura noticiadas por ninguém. Vamos então ver o que descobriu a ERC:

“Cumpre dizer, em primeiro lugar, que as declarações de José Rodrigues dos Santos na entrevista sinalizadas nas participações dirigidas à ERC não podem, sob pena de as mesmas se encontrarem truncadas, ser observadas sem o devido contexto, discurso e raciocínio explanados ao longo de toda a entrevista pelo entrevistado. E, nessa medida, a análise permitiu verificar que o entrevistado não minimiza nem aligeira os crimes cometidos contra os judeus nos campos de concentração, patente em declarações como: a) ‘Porque quando nós vamos ler os documentos e os testemunhos originais em textos muito especializados, percebemos que a realidade era pior do que aquilo que eu estava habituado a ver nas descrições da televisão ou noutros romances. De tal maneira foi assim que, a certa altura, quando eu estava a fazer a pesquisa, há um momento em que eu desisti de escrever o livro (…)’; b) ‘(…) as pessoas que sobreviveram são, de facto uma ínfima minoria. Portanto, nós quando lemos essas histórias dá a impressão que, pronto, quase toda a gente sobreviveu e tal, e, na verdade, quase toda a gente morreu. E falta na literatura uma obra que mostre a voz dessas pessoas. E, portanto, foi isso que eu fui recuperar.’; c) ‘Mas a maior parte dos judeus que foram para Auschwitz, eles não foram para um campo, não tinham uma escola, eles foram para ser mortos. E a voz desses judeus não é contada’.”

Em conclusão, depois de estabelecer que eu não minimizei nem aligeirei o Holocausto, bem pelo contrário, e depois de admitir “truncagem” das minhas declarações, a ERC deliberou “não dar provimento” às queixas.

O que nos remete para a verdadeira fonte destas campanhas de ódio: os meus romances. Ao contrário do que alguns académicos pensam, a literatura não serve para fazer exercícios de estilo e de linguagem ou simplesmente para entreter, embora estas funções sejam legítimas e se enquadrem na atividade literária. O que torna a literatura uma arte nobre é a sua capacidade de questionar, de problematizar, de chocar, de suscitar debate, de pôr em causa ideias feitas.

Escrever um romance alinhado com a ideologia do momento, dizendo sempre o que o establishmentespera que se diga e nada escrever que ponha em causa o status quo, é a coisa mais fácil. Não traz problemas aos escritores e atrai até a ajuda “benemérita” e “desinteressada” do poder instituído. Chovem convites, viagens e ações de “mecenato”. Não há nada como navegar na onda do momento.

Mas, lamento, não é isso o que se espera de um escritor. As grandes obras literárias não são as alinhadas com o poder político, económico ou ideológico prevalecente em determinado momento, mas aquelas que, em contracorrente com a ideologia dominante, suscitam questões, incomodam e põem em causa os preconceitos do seu tempo.

Eça de Queiroz problematizou a questão do celibato do clero em O Crime do Padre Amaro numa altura em quem isso não se podia fazer, as irmãs Brontë, Flaubert e D. H. Lawrence fizeram o mesmo sobre o papel da mulher na sociedade, George Orwell revelou em 1984 a realidade tirânica de um regime comunista numa altura em que o comunismo era santificado pelos intelectuais ocidentais. Todos estes escritores foram vilipendiados pelo que escreveram, mas, com a sua coragem em enfrentar o status quo, todos eles prestaram um enorme serviço à humanidade.

A descrição do que se passa nos matadouros insere-se nesta linha. O primeiro romance a tocar neste tema foi The Jungle, de Sinclair Lewis. Conta-se que o presidente dos Estados Unidos estava a comer uma costeleta de porco quando leu uma passagem do romance sobre o que acontecia nos matadouros e, chocado, atirou a costeleta pela janela da Casa Branca. O certo é que essa obra de 1906 questionou o status quo e obrigou-o a alterar determinadas práticas nos matadouros americanos.

Não tenho a menor pretensão de chegar aos calcanhares destes gigantes da literatura universal. Mas sei bem qual o papel mais nobre da literatura e qual a minha bússola moral para na atividade literária me orientar. A minha obra não existe simplesmente para entreter nem para fazer exercícios estilísticos; para isso encontram-se em qualquer livraria muitos outros livros. Escrevo sobretudo para questionar, para colocar mitos em causa e para fazer pensar. Precisamos de problematizar as verdades feitas, quebrando dogmas e violando tabus – e é para isso que a literatura existe.

Fazê-lo, porém, implica mexer em interesses instalados. Se os dogmas e os tabus existem é porque convém a alguém que existam. O Último Segredo foi vilipendiado pela Igreja por ter revelado as descobertas dos historiadores sobre Jesus, Vaticanum provocou irritação por abordar a corrupção no Vaticano, O Anjo Branco por questionar o colonialismo, Fúria Divina por mostrar a faceta violenta do islão, A Vida Num Sopro por pôr em causa o Estado Novo, As Flores de Lótus por expor as origens marxistas do fascismo. Tudo temas verdadeiros, tudo tabus que o status quo, ou parte dele, não quer ver expostos nem questionados. Pois foi justamente por isso que os expus e questionei.

O preço a pagar são os insultos do costume. Mas todas estas campanhas de ódio e difamação apenas devem é envergonhar os seus autores. Sou nazi porque disse que o dia chegará em que as gerações futuras verão o que fazemos aos animais da mesma maneira que nós hoje vemos o que os nazis e os comunistas fizeram nos seus campos de concentração?

Então leia-se a epígrafe final de O Jardim dos Animais com Alma, uma citação de Isaac Bashevis Singer. “No seu comportamento para com as criaturas, todos os homens são nazis”, escreveu ele. “A presunção de que o homem pode lidar com as outras espécies como bem lhe apetecer exemplifica as teorias racistas mais extremas, o princípio de que a força tem sempre razão”. Isaac Bashevis Singer era Prémio Nobel da Literatura. E, permitam-me lembrar, judeu.

Já agora, os vegetarianos não me passaram nenhuma procuração para os defender, mas o que dizer da sugestão de David Neves de que Hitler é a “grande referência moral” de quem desaconselha o consumo de carne porque Hitler era vegetariano? Então agora também os vegetarianos são nazis?

Não há dúvida, o disparate anda à solta.

© José Rodrigues dos Santos, 2022

[1] Christopher Browning, “Nazi Ghettoization Policy in Poland: 1939-41”, Central European History, Volume 19, Número 4, Cambridge University Press, dezembro de 1986, p.344.