A esquerda perdeu o povo. O fenómeno é geral. Mas perdeu-o por culpa dela.  É que o povo modificou-se e a esquerda não deu por isso e não se adaptou. Nesta matéria a direita foi muito mais lúcida.

Na verdade, as relações de trabalho transformaram-se brutalmente. A terceira revolução industrial modificou tudo. A maioria dos proletários de antanho deixou de ter uma relação profissional permanente e estável com a empresa e com o patrão. Esta realidade modificou por completo a luta pela melhoria das condições de trabalho e diminuiu a sindicalização. Há cada vez mais trabalhadores independentes e cada vez menos proletários imersos numa relação laboral como a que conheceram os pais e os avós deles. O trabalho atomizou-se e individualizou-se. Este fenómeno separa o trabalhador do meio industrial e fabril em que as gerações anteriores a ele cresceram e acabou por completo com a revolucionária consciência de classe que caracterizava o saudoso proletariado da cintura industrial de Lisboa. A divisória das classes sociais nada tem a ver com a que eles conheceram. E a universalização do ensino, mesmo do mais elevado, criou elevadores sociais como nunca se tinha visto. Nos outros países esta realidade é ainda mais nítida. A realidade é a de uma classe média que tende a universalizar-se.

Longe vão os tempos em que os partidos de esquerda, partido comunista à cabeça, se enraizavam nas fábricas e viviam em comunidade com a população trabalhadora, o que gerava solidariedades e mundividências comuns. Tudo isso acabou. Esse mundo operário morreu e não volta. Numa sociedade que já não é maioritariamente de produção industrial mas de serviços não há classes unitárias nem consciências comuns. Impera o contrato individual de trabalho e a desindustrialização e a deslocalização acabaram com o proletariado tradicional. A economia funciona cada vez mais em rede e não local e verticalmente. Em vez de consciência de classe temos consumismo e o mercado destruiu as solidariedades de outrora. No que eram os centros industriais mais importantes a esquerda vive hoje de recordações.

Na verdade, os trabalhadores das plataformas digitais e os motoristas da Uber nada têm a ver com o proletário de há cinquenta anos. Do trabalho como é realizado hoje já não resulta uma consciência homogénea de classe e sem ela a esquerda vai a reboque nem sabe bem de quê.

A esquerda não sabe bem o que há-de fazer neste novo e complexo contexto. Ficou desnorteada. A mais intelectualizada vira-se para um discurso antropológico redentor invocando a resistência à mercantilização da vida e invoca até a dignidade, matéria em que a história não lhe dá grandes créditos. Esforça-se agora também pela defesa dos direitos individuais, mas esquece-se que mete a foice em seara alheia porque nesta matéria o liberalismo tem muito mais legitimidade e resultados a apresentar. Não são estas tentativas que a salvarão. O discurso intelectual não colhe no terreno político das massas e a esquerda precisa delas. Uma esquerda sem povo não vale em termos políticos. Já dizia Gramsci que uma ideologia sem os pés na realidade social é uma fantasia individual. A outra esquerda, à falta de proletariado, vira-se para a defesa populista dos segmentos ditos excluídos da sociedade e das minorias. Marcuse ainda apostava nos estudantes mas mesmo esta aposta está hoje fora de causa. Sei muito bem o que pensa e como pensa a maioria dos estudantes universitários de hoje; nada tem a ver com o meu tempo de estudante.

Daí o impasse. A esquerda populista acaba por fazer o jogo da direita como o partido comunista logo percebeu e denunciou. A luta pelos excluídos serve a direita porque esta aprende depressa com ela e segue-lhe os passos, assim reforçando a sua legitimidade. Abre o caminho à direita e esta fica-lhe até agradecida. E a esquerda (pseudo) intelectualizada vale pouco na luta política na sociedade laica e pós-tradicional em que vivemos. De modo que não lhe vejo grande futuro. Talvez a conversão ao Islão mais radical.

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