Há dias a SIC passou uma perturbadora reportagem sobre o Qatar, ou melhor, sobre as penosas e injustas condições de vida das pessoas que aí trabalham na construção civil em geral e, mais em particular, na edificação dos estádios e de outras estruturas que irão receber o próximo campeonato mundial de futebol.

O que a reportagem nos revela é um emirado onde a liberdade e a justiça, tal como as entendemos, não têm grande lugar e onde quem pretender revelar isso ao mundo se arrisca a passar um mau bocado. O vídeo da SIC mostra a saga de uma equipa de reportagem de uma televisão norueguesa que pediu — e, alegadamente, obteve —, autorização para filmar num campo de alojamento de trabalhadores. Porém, um dia depois foi detida pela polícia de segurança, metida, durante 32 horas, numa cela colectiva, sem alimentação, sujeita a tratamento intimidatório e ríspido. Quando, por fim, foi libertada e lhe foi devolvido o seu equipamento de trabalho, verificou que todas as gravações de imagem e som que havia feito, tinham sido apagadas pela polícia.

O que é que os noruegueses pretendiam mostrar que as autoridades qataris não queriam que se visse? O que é que não queriam nem querem que se saiba? Que há violações de direitos humanos e que as condições de exploração e de desprotecção a que os trabalhadores migrantes estão sujeitos são revoltantes. Que há um número desconhecido ou incerto de mortes desses operários devidas às condições de trabalho. Que os seus salários podem ser baixíssimos (260 euros por mês, por exemplo), e pagam — quando efectiva e atempadamente o fazem — muitas jornadas de duríssimo labor com apenas um dia de descanso por semana — se e quando esse dia se respeita — e turnos diários de 8 ou 12 horas, conforme a exigência da empresa empregadora. À noite, permitem-lhes um tempo de sono em alojamentos partilhados com, por vezes, 12 pessoas por quarto. E há, ao fundo do túnel, a promessa de que, ao fim de dois anos de trabalho, terão direito a um bilhete de regresso a casa.

Outro aspecto incómodo para as autoridades qataris revelado pela reportagem da SIC é que as remunerações dos trabalhadores estão dependentes de critérios racistas e xenófobos, pois variam consoante a nacionalidade e a cor da pele do trabalhador em questão. O jornalista da SIC entrevistou Manuel Gomes Samuel, chefe da missão da embaixada portuguesa em Doha, que tentou amenizar ou justificar a razão de ser de tais critérios. O diplomata português disse que não via no Qatar questões de racismo que fossem mais evidentes do que noutros países onde já esteve. Acrescentou, todavia, que os trabalhadores (mais escuros, depreende-se) “têm mais resiliência, não por uma questão de pele” — ou seja, não por preconceito racista — mas por ser “natural que uma pessoa que tem mais melanina na pele, portanto mais habituada a climas onde o sol tem uma incidência mais forte, tem mais capacidade, obviamente, de persistência nessas temperaturas do que um habitante, por exemplo, do norte da Europa.”

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Ou seja, para explicar que não era por racismo que os qataris seleccionavam de acordo com o tom da pele, o diplomata português foi buscar um antigo argumento racista utilizado, por exemplo, para justificar a exploração do trabalho de escravos negros no mundo colonial tropical. Não conheço Manuel Gomes Samuel, mas é óbvio que ao tentar dar uma explicação de natureza médica, dermatológica, foi cair num raciocínio racista. Não sei se o senhor em causa é racista. Os caçadores de bruxas saberão, mas eu não sei — é difícil avaliar por uma frase só, ainda por cima arranjada ao gosto dos autores da reportagem, pois as declarações do diplomata foram segmentadas e transmitidas em partes diferentes do vídeo, o que pode causar alguma desvirtuação do que disse ou quis dizer. Mas também não é isso que me interessa aqui.

O que eu quero sublinhar é que foi sobre estas breves declarações de Manuel Gomes Samuel, estes breves segundos numa reportagem de 23 minutos, que a esquerda woke se precipitou. O jornalista Hélder Gomes escreveu, no Expresso, um artigo sobre os ditos do diplomata, as redes sociais da extrema esquerda entraram em alerta vermelho, os vigilantes woke começaram a hiperventilar e a redigir, e toda essa gente se focou em exclusivo, ou quase, na infelicíssima frase do diplomata português.

À primeira vista a coisa percebe-se. É um argumentário racista, que os surpreendeu e chocou. Mas… que aconteceu, entretanto, a tudo o resto? Que aconteceu à indignação pelas condições em que os migrantes trabalham? Pela amostra que me tem sido dada a ver — e com a excepção de Carmo Afonso — a esquerda woke passou por isso como cão por vinha vindimada e, pelo menos num primeiro momento, não quis saber desse assunto para nada, saltou essa barreira e seguiu adiante para apontar mil dedos ao suposto racismo estrutural dos portugueses que se manifestaria, assim, impúdico, na boca do senhor do Ministério dos Negócios Estrangeiros que nos fala das lonjuras do Qatar.

Ora, importa dizer que a esquerda woke está, uma vez mais, enganada. A reportagem da SIC sobre o Qatar nada nos diz sobre o racismo estrutural. Nesse departamento, mostra-nos, apenas as declarações infelizes de um diplomata, que emitiu uma opinião errada, arcaica, historicamente conotada e condenada, sobre a razão pela qual as empresas operando no Qatar, e as autoridades locais, seleccionam e remuneram diferentemente os trabalhadores migrantes. É apenas mais um facto isolado, um grãozinho de areia racista que a falange woke detecta com os seus olhinhos de raios-x e junta, numa pequena taça, aos outros grãozinhos que já foi recolhendo e coleccionando. Para quê? Para, a pretexto deles, fazer, depois, uma gritaria na tentativa de dar aos portugueses, e a quem nos vê e avalia de fora, a ideia de que aquelas perspectivas e atitudes racistas, reunidas numa tacinha, correspondem, na verdade, a um imenso areal.

Ou seja, a reportagem da SIC e a notícia do Expresso nada dizem sobre racismo estrutural, mas o eco que levantaram diz muito sobre as cabeças e as trepidações da esquerda woke. Essa parte da nossa esquerda viu o Qatar na sua iniquidade, mas só teve olhos para o suposto racismo dos portugueses pois essa é a sua ideia fixa, o seu ódio de estimação, o totem que une a seita. E é por isso que as pessoas dessa área política e ideológica se interessam muito pela escravatura dos negros desenvolvida em proveito dos europeus, anatematizam especialmente essa forma de escravatura, mas desvalorizam as dos outros povos ou as dos negros quando feitas por outros negros ou por povos do norte de África e da Ásia. É por isso, também, que essas pessoas são relativamente indiferentes, ou pouco atentas, a formas acentuadas ou extremas de exploração e sujeição que não tenham sido a referida escravatura de africanos em benefício de traficantes e senhores ocidentais. Todavia, essas formas de exploração existiram e vitimaram, muitas vezes, populações portuguesas, como mostrarei num próximo artigo.