A guerra entre Rússia e Ucrânia transformou definitivamente a paisagem geopolítica da Europa. A influência militar de Moscou no continente será uma constante. A tentativa de Putin de conter o movimento da União Europeia e da NATO em direção às fronteiras russas cria um obstáculo quase instransponível à Paz Democrática. Como teoria, foi usada pelo Ocidente para justificar as guerras que empreendeu no Oriente Médio neste século. O seu resultado menos trágico é uma região sob constante pressão e competição militar. Esse pode ser o novo normal europeu. A ordem internacional da Paz Democrática corroeu a si própria, no Oriente Médio e agora chega à Europa para acabar com a festa.

A retórica na qual está embalada a teoria da Paz Democrática é fascinante, sobretudo para aqueles que vivem a segunda infância. Porém, insuficiente para esconder a lógica orwelliana que sua abstração encerra. Os países democráticos são pacíficos e não lutam entre si. Logo, as guerras que travam são pela paz e moralmente aceites. No Ocidente fofinho, parece ser OK matar pela democracia. A redução lexical da guerra justifica o escárnio descarado.

A Doutrina Bush foi o ponto alto da influência da Paz Democrática na política externa dos EUA. George W. Bush celebrou a vitória na Guerra Fria como sendo consequência da superioridade moral da ordem política americana. Uma simplificação óbvia como muitas que saem dos gabinetes em Washington. Mas o embuste não impediu os neoconservadores de desenvolverem a crença num suposto anseio comum de todos os povos por democracia. Sua disseminação mundial passou a cruzada urgente a ser empreendida.

Desde então, a matança parece não ter fim. Bush despiu-se de qualquer pudor ao empreender guerras. Justificadamente os EUA invadiram o Afeganistão para desmantelar a Al-Qaeda e o regime Talibã. Mas, vingança tornou-se oportunidade para espalhar a democracia e, claro, ganhar dinheiro – alguém tem de financiar o caríssimo complexo industrial militar. Assim, com base em fraude, invadiram, ocuparam e exploraram os recursos econômicos do Iraque.

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Barack Obama, Nobel da Paz por pacifismo presumido em 2009, esperou dois anos, tempo suficiente para evitar constrangimentos ao comitê do prêmio em Oslo, até recomeçar a saga do seu antecessor. Em 2011, caçou e matou Osama bin Laden no Paquistão. No mesmo ano, a percepção equivocada de Obama da Primavera Árabe como sopro suave da democracia levou os EUA a colaborem com o Daesh para a eclosão de duas guerras civis, na Líbia e na Síria.

Como se sabe, no Oriente Médio a democracia murchou antes mesmo de florescer. Povos que vivem ao largo da modernidade parecem enxergar a democracia como um experimento exótico de sociedades frívolas, fracas na visão de seus líderes. A democracia não é uma facilidade imposta de fora para dentro. Para emergir e amadurecer, depende do processo de construção conjunta de suas instituições – mas, talvez Tocqueville estivesse errado.

No rol de matanças promovidas pelos EUA e seus aliados nas últimas décadas, a ilusão de democratização do Oriente Médio é a vítima menor. Sim, exceto Bashar al-Assad, os inimigos da liberdade estão mortos. Entretanto, os seus países foram lançados à anarquia, Estados falhados a exportar imigrantes e violência para o mundo. Hoje, a missão de disseminar democracia no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria pode ser interpretada como licença para matar pessoas, aos milhões, inclusive civis, entendidos como colateral damage.

Entretanto, as tragédias do Oriente Médio não serviram de lição. O Ocidente parece acostumado com o gosto de sangue. A imperícia, com o adicional de demência, da maioria dos seus líderes impele Rússia e Ucrânia a escrever mais uma página sangrenta da infeliz ideia de universalização da democracia. Tentar atrair a Ucrânia para as estruturas ocidentais é uma provocação que já contabiliza milhares de mortes. E a escalada da violência apenas começou.

Iniciativas ocidentais de fortalecer sua segurança às custas da segurança de outros Estados não chegam a perturbar o sono de Putin. O poder dissuasório nuclear desencoraja qualquer hipótese de agressão à Rússia. Na verdade, ele se sente acossado pelo fantasma das ideias e valores subjacentes às instituições ocidentais.

As revoluções coloridas que sacudiram o entorno da Rússia na primeira década deste século aguçaram o senso de autopreservação de Putin. Reivindicações de democracia e liberdade feitas por opositores de governos simpáticos a Moscou foram entendidas como ameaça ao regime do Kremlin. A possibilidade de desestabilização interna por contágio de mudanças de regime na vizinhança soa mais perigosa do que a infraestrutura militar da NATO.

Putin luta para manter de pé o regime político no qual é figura central. Sua imagem de autocrata se confunde com a do Estado que governa com ambições e interesses próprios. A queda de um implica a morte do outro. Logo, é improvável que ele caia sem causar muita dor e prejuízo para o povo russo, primeira vítima de suas atrocidades, e de resto para o mundo.

O que está em jogo na Ucrânia não é somente a carreira longeva de um autocrata anacrônico. A ambição de disseminar a democracia que destruiu a frágil ordem política regional do Oriente Médio agora ameaça a Europa. A corrida armamentista no continente começou e vai drenar recursos necessários ao financiamento do estado providência de que tanto se orgulha o europeu.

A política de portas abertas das estruturas ocidentais parece ter encontrado o seu limite. O propósito pode até fazer brilhar os olhos dos defensores da Paz Democrática. Mas, neste momento, insistir no avanço implacável da União, bem como da NATO, em direção à fronteira da Rússia é contratar para o continente um futuro de pressão e competição militar.

Bem-intencionado ou não, o projeto da Paz Democrática tornou-se mecanismo gerador de crises. Neutralidade em questões espinhosas começa em casa, nas relações familiares. Como estratégia de política externa, é adotada por países que não querem se deixar contaminar pela toxicidade de vizinhos. A Rússia e o Ocidente ainda podem se entender e salvar a Europa de tornar-se o novo Oriente Médio. Ideias mudam, sobretudo quando começa a faltar comida na mesa.