Uma forma elementar de monitorizar políticas públicas é olhar para o Orçamento de Estado. Porque é aí, no financiamento, que se faz a primeira prova de realidade do discurso político: por mais eloquentes que sejam as palavras no papel, as medidas políticas requerem condições financeiras para serem implementadas – e nem sempre as têm. Por exemplo, os partidos políticos podem dizer-se muito comprometidos com a transparência democrática e com o escrutínio da sua actividade que, se estrangularem os orçamentos das entidades responsáveis pela fiscalização, esse escrutínio fica inviabilizado à partida. Ora, este exemplo é infelizmente real e actual.

A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), cuja função é precisamente fiscalizar as contas dos partidos, está em “situação de quase ruptura”. Não é uma opinião dada ao exagero, é uma deliberação formal da própria ECFP, que explica que a falta de recursos humanos a obrigará a concentrar a sua actividade exclusivamente nas campanhas eleitorais desde 2015, em prejuízo da verificação das anteriores contas anuais dos partidos. A situação estava anunciada e, no início do ano, havia sido comunicada ao Tribunal Constitucional e ao primeiro-ministro, sem que entretanto houvesse qualquer alteração prática. E, note-se ainda, os alertas não começaram este ano, pois vinham de trás: a fiscalização das contas partidárias referentes a 2009 já prescreveu, após avisos que todos (deliberadamente) ignoraram.

A “situação de quase ruptura” da ECFP não é um acidente ou um azar. O que está a acontecer é que o governo e os partidos políticos estão a bloquear por via orçamental o funcionamento da ECFP, o que resulta num “gravíssimo risco” de as contas de 2010 não serem fiscalizadas e prescreverem em Dezembro, assim como as de 2011 não serem analisadas. Algo que, como acima referi, já aconteceu em relação às contas de 2009. E as contas de 2012 até 2015? Adivinhou: tudo indica que irão pelo mesmo caminho, isto é, pela ausência de escrutínio por falta de meios. Ao todo, esta espécie de amnistia forçada pelo estrangulamento orçamental pode abranger um período de 6 anos. É grave? Sem dúvida. E ainda mais grave fica quando se percebe o contexto: isto acontece após, em Dezembro do ano passado e depois no primeiro trimestre de 2018, os partidos terem aprovado uma nova lei do financiamento partidário que indignou o país e que, em muitos pontos, retirou eficácia à fiscalização da ECFP – por exemplo, retirando-lhe o poder regulamentar.

O que vem de seguida é feio de dizer, mas não há outra forma de o pôr: os partidos estão a brincar à democracia e a sabotar o seu próprio escrutínio, escapando à prestação de contas e ganhando muito dinheiro com isso. É a segunda parte de um golpe. Depois de terem procurado, pela via legislativa, defender os seus interesses no enquadramento do financiamento partidário, os partidos estão agora a implementar a face oculta do seu plano: encher de responsabilidades de fiscalização entidades às quais não se garantem meios para trabalhar. Deliberadamente, repita-se. Porque não faltaram alertas e porque quem define o orçamento é o governo e são os partidos no parlamento. Ou seja, se a situação de ruptura da ECFP existe é porque todos convivem bem com ela. Olhe-se de onde se olhar, isto não é digno de uma democracia consolidada que se define pelo padrão europeu.

Em Portugal, persiste uma certa tendência para apontar escândalos em cada esquina. Talvez por isso já ninguém reconheça um verdadeiro escândalo quando tropeça nele – muitas vezes, como foi este o caso, nas páginas interiores dos jornais e longe das manchetes. Ora, ninguém duvide que este é um verdadeiro escândalo, à conta do qual a indignação deve ultrapassar as fronteiras partidárias e em que a sua resolução (ou não) determinará a qualidade do ar democrático que se respira neste rectângulo. Esta é, portanto, uma linha vermelha: não dá para votar ou, sequer, respeitar os partidos políticos que contornem as regras democráticas e que não puserem travão a esta vergonha. Como? Exigindo meios e financiamento adequados ao funcionamento da ECFP e às actividades de outras entidades que fiscalizam os partidos. A oportunidade está aí à espreita, no próximo Orçamento de Estado.

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