Existe uma entidade cuja responsabilidade passa por escrutinar as contas partidárias. Chama-se, apropriadamente, Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP). Mas a ECFP sofre de um problema: de um lado, tem milhares de contas para analisar e, do outro lado, não tem recursos — nos seus quadros, em Maio 2022, apenas constavam três pessoas (a presidente e dois vogais). Ora, a presidente do ECFP desde há muito tempo que alerta para a “crónica inadequação de recursos e meios humanos de que carece” a entidade, o que prejudica inevitavelmente o cumprimento da missão da ECFP. Só que o recrutamento de auditores é difícil por causa das condições oferecidas — os profissionais qualificados recebem propostas salariais mais vantajosas nas empresas de auditoria, pelo que não optam pela ECFP. E, sem outra solução, a ECFP tem mesmo de ir bater à porta das empresas de auditoria, subcontratando-as. Ou seja, por mais que a ECFP se esforce para fazer o seu trabalho, a entidade mais parece um cenário de opereta: por detrás da grandiosa fachada de cartão, não há nada.
Como seria de esperar, a contratação externa não resolve e a falta de recursos internos acarreta consequências. A mais evidente é que o escrutínio das contas partidárias se arrasta durante anos, incapaz de prevenir atempadamente as violações à lei e a transparência no financiamento partidário. E, com esse arrastar, surge a impunidade. Em Maio deste ano, a ECFP comunicou a prescrição do procedimento contra-ordenacional aberto na sequência de irregularidades encontradas nas contas dos partidos de 2013. Agora, em Setembro, a ECFP informou que também deixou cair os processos das contas de 2014.
O problema vem de trás: em 2018, a ECFP declarou estar em situação de pré-ruptura, desistindo de fiscalizar as contas que na altura estavam pendentes — as de 2009 já haviam prescrito, as de 2010 prescreveram logo a seguir. Entretanto, em 2020, anunciou-se a prescrição referente às contas de 2011. Não foi surpresa, pois, em 2018, tendo em conta a enorme quantidade de fiscalizações pendentes, a estratégia foi focar os parcos recursos existentes no escrutínio dos anos mais recentes (a partir de 2015), decisão que, na prática, significou um perdão plurianual de multas aos partidos — resta-nos aguardar para descobrir o que acontecerá às contas de 2013 (ano de eleições autárquicas) e de 2014 (ano de eleições europeias). Agora, em 2022, a presidente da ECFP anuncia a mesma estratégia: dar prioridade aos anos mais recentes (2020 e 2021). Julgo que dispensa explicações o que vai acontecer aos anos que ficam para trás.
A saúde de uma democracia não se mede através de sondagens eleitorais, muito menos através dos índices de popularidade do Presidente da República. O vigor de um regime democrático avalia-se pela independência e pelo bom funcionamento das suas instituições, nomeadamente daquelas cuja missão consiste no escrutínio do poder político. Já se sabe: os homens não são anjos e, como tal, um regime democrático assente na separação de poderes precisa de mecanismos de fiscalização eficazes, para prevenir abusos por parte dos titulares de cargos políticos e, assim, salvaguardar o bem comum. Ora, por este padrão, a democracia portuguesa tem a saúde num caco.
Os partidos não parecem inquietos com estes sucessivos fracassos na fiscalização das contas partidárias. Não admira — são os beneficiários directos das limitações operacionais da ECFP. E não surpreende — o histórico do comportamento dos partidos mostra-nos que os seus esforços são apenas no sentido de escapar a multas, a impostos e a escrutínios (ainda se lembram de quando os partidos se isentaram a si mesmos, quase às escondidas, do IVA?).
Seria refrescante que alguém na Assembleia da República assumisse a vergonha que a situação impõe sobre o nosso regime democrático e legislasse de modo a conferir à ECFP os meios de que necessita. Não, não é só dinheiro ou reforço de competências — há que alterar o estatuto dos técnicos auditores, para que as suas condições remuneratórias possam ser competitivas face à concorrência das empresas de auditoria. Há que travar aquilo que está a acontecer desde há anos, e que se resume assim: para os bolsos dos partidos não falirem, obstaculizou-se o escrutínio às suas contas e optou-se pela falência democrática. Lamento a brutalidade desta conclusão, mas um país que aceita isto não tem futuro.