Mais que uma escolha – que, aparentemente, está feita –,  a eleição presidencial de Domingo vai ser uma sondagem geral à opinião pública portuguesa para avaliar o sentido actual da sua percepção político-ideológica (se é que de percepção “político-ideológica” pode agora falar-se). Embora as sondagens valham o que valem, o voto de protesto vá contar e a abstenção no meio desta muito maltratada e mal gerida Pandemia possa ser uma incógnita perturbadora e perturbante, o mais certo é que o actual Presidente seja reeleito à primeira volta.

As esquerdas festivas

Por isso,  neste “tempo de reflexão”, para educar e exercitar a percepção político-ideológica e espairecer dos vírus que nos atormentam, nada como uma boa comédia, como a que vi recentemente.

A Festa, um filme de 2017, de Sally Potter, com um elenco excepcional, é uma divertida charge ao pensamento correcto chique e menos chique. Ao vê-lo, não pude deixar de pensar nas várias esquerdas que por aqui andam. Não falo das pessoas – embora seja quase só disso que agora se fala ou possa falar, tão pobres são as ideias, ou melhor, a falta delas, e tão estreito e rasteiro é o verdadeiro espaço de debate –, falo  da cartilha delirante e simplista que, sob a capa de sofisticação intelectual, se apresenta como ideário único e inquestionável.

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Ora, melhor ou pior, já existiram ideias em Portugal e na política portuguesa – à esquerda, à direita e até ao centro. Salazar tinha ideias e convicções políticas; Cunhal também;  Soares, à sua maneira, tinha um ideário; e mesmo nos partidos do Centrão havia ideias; bem como nas múltiplas extremas-esquerdas – estalinistas, trotskistas, maoístas, utópico-depressivas, utópico-esfusiantes –, ainda que fossem ideias que, caso vingassem, acabariam por transformar este rectângulo numa espécie de Albânia onde, na melhor hipóteses, nos internariam num campo de concentração do tamanho de dez Tarrafais para sermos endoutrinados na boa-nova marxista-leninista e podermos depois morrer em paz, já devidamente seviciados, arrependidos e confessados.

Nesses tempos de albânicas possibilidades, cheguei a imaginar para mim um futuro como bibliotecário de Peniche, depois de reeducado num qualquer Lager, isto no mais benigno dos cenários, num regime comunista moderado, estabilizado e brando, assim ao modo do Leste europeu em fim de ciclo. Agora a reeducação faz-se ao domicílio e, de preferência, sem livros nem ideias.

Porque as extremas-esquerdas, aparentemente, já não as têm, ou esqueceram-nas: esqueceram Lenine, Mao, Estaline, Trotsky, até Gramsci e  Marcuse. Mas continuam a deter a verdade e a ter uma agenda. Uma agenda de causas aparentemente pequenas, benignas e inócuas mas uma agenda.  E uma agenda “antifascista” – sendo o fascismo um conceito/insulto/arma de arremesso infinitamente elástico, definido ao minuto e à la carte para ser usado contra todo e qualquer “herege”. Também, não há como censurá-los: não podem ser anticapitalistas, porque já não há capital em Portugal; não podem ser antieuropeus, porque é da Europa que vêm as vacinas e há-de vir a Bazuca com os ansiados dinheiros; não podem sequer ser anti-socialistas, porque os contornos do socialismo que nos governa são imprecisos e fugidios e porque são os socialistas que  distribuem o tempo de antena e o dinheiro e abrem espaço às suas agendas fracturantes.

Então o que são? São anti-populistas, anti-racistas, anti-machistas, anti-homofóbicos, anti-transfóbicos, enfim, “antifascistas”. Podem ser os socialistas e as esquerdas aliadas que nos governam mas são “os fascistas” os culpados de todos os males portugueses, passados, presentes e futuros, os responsáveis últimos por tudo o que, entre nós, correu mal, corre mal e pode correr ainda pior.

Os falecidos ex-mestres das extremas-esquerdas – Estaline, Mao, Trotsky – jazem esquecidos, um com os seus campos de concentração, outro com os seus Saltos em Frente, o último com aquele fascinante comboio blindado que aparece no Dr. Jivago e no Reds. São, evidentemente, coisas do passado. Trotsky escrevia bem (“A Minha Vida” é um grande livro de Memórias) e eram belos os seus ideais… subsidiariamente também nos mataria a todos, se nos apanhasse a jeito, como fez aos Russos Brancos e aos “desviacionistas”, mas isso pouco importa porque isso já lá vai. Já lá vai,  diluído na fluidez de género, de identidade e de pertença, num mundo de infinita tolerância e consumo; um mundo de todas as cores e de mãos dadas, em que a saltitante vida animal é consagrada e a morte humana encorajada (para quê ver sofrer e socorrer e acompanhar quem sofre, quando se lhes pode dar “um direito”?).

Mas se o leninismo, o estalinismo, o maoismo, o trotskismo  estão mortos e enterrados e deles ficaram só as flores, o fascismo permanece com todos os seus espinhos e horrores – todos e mais alguns.

E as Direitas?

Politique d’abord, dizia Charles Maurras, intelectual e político da direita nacionalista e tradicionalista que renovou o pensamento conservador na Europa Ocidental nos princípios do século XX. Mas não há política sem ideias e, em Portugal, tem havido poucas – também pela despolitização que o Estado Novo incutiu às direitas portuguesas, pela importação, depois do 25 de Abril, de um liberalismo economicista anglo-saxónico como alternativa ao socialismo herdado do PREC, e por outros males que vêm de longe, como o deslumbramento e seguidismo das elites. Assim, a Direita tende a responder ao agressivo folclore correcto das esquerdas ora com uma contrição cooperante, ora com um basismo e um primarismo que podem justificar-se – e justificam-se – numa fase de denúncia e de protesto, mas que terão de ser corrigidos e endireitados para que os resultados políticos sejam consequentes. Ou seja, o protesto, a antítese, terá de progredir para a síntese, e depressa.

Porque há um pensamento de direita, nacional e euro-americano, com base nos valores do cristianismo, do patriotismo, da família, da propriedade dentro da justiça social e do bem comum; o de uma direita nacional e social, aberta em economia mas justicialista e solidária.

E se a Direita quiser alguma vez voltar a ter poder, terá de seguir (politicamente e não pessoalmente) o lema pas d’ennemis à Droite, pas d’amis à Gauche. Excluindo, bem entendido, desse “à Droite”, os verdadeiramente racistas, os paranóicos, os loucos das teorias da conspiração, os suspeitos do costume, que existem em todas as latitudes. Os da esquerda, dada a raiz puritana e totalitária dos “socialismos reais”, a reivindicação do monopólio da verdade e da vida intelectual e a capacidade dissuasora da reductio ad Hitlerum, concentram a sua paranóia inquisitória na diabolização do inimigo – elaborando eternamente sobre aquilo a que o Dr. Cunhal, por táctica calculada, chamava “o nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, como se fosse tudo a mesma coisa. Os da direita, infelizmente, mais à semelhança dos da antiga esquerda, concentram a sua paranóia autofágica no inimigo interno, nos outros da “sua direita” ou nos das “outras direitas” – nos traidores, nos desviacionistas, nos cobardes, nos vendidos.

Hoje, mais do que nunca, a defesa da liberdade de pensar, falar e escrever tem de ser uma das causas primordiais e principais da Direita. Há bons exemplos na Europa: o Vox, aqui ao lado, ou os Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni.

Para agir, passado o tempo do protesto – e o protesto é fundamental e convém que fique bem vincado –, é preciso construir nas ideias e trazer ideias com asas, capazes de actuar na realidade, de ser práticas. E como dizia um filósofo francês do século passado, nada mais prático que uma boa teoria.

Votem bem e sem contágios.