Putin, profusamente caricaturado como Hitler, usa como principal justificação ideológica para as suas “operações militares” na Ucrânia a “desmilitarização” e “desnazificação” do país, enquanto o seu ministro da Defesa convoca para Agosto “o primeiro congresso antifascista do mundo”, a realizar em Moscovo, para “unir os esforços da comunidade internacional na luta contra a ideologia do nazismo”. Por cá, o Partido Comunista Português, que endossa as raízes do conflito para o imperialismo americano, condena o líder russo, não pelas suas “desnazificantes operações militares” em Estado alheio, mas pelo facto de o actual inquilino do Kremlin criticar o “grande Lenine”, acusando-o de ter inventado a moderna Ucrânia independente.

Reductio ad Hitlerum

É sintomático que o nacionalista autoritário Putin, ao procurar uma narrativa legitimadora para uma guerra decorrente de razões securitárias, de Realpolitik, não resista ao Reductio ad Hitlerum ou Reduction ad Nazium dos dirigentes ucranianos.

Quem cunhou a expressão em 1951 foi Leo Strauss, um original pensador conservador nascido na Alemanha, judeu emigrado e naturalizado americano por causa de Hitler. Para Strauss, havia que evitar a falácia de substituir o reductio ad absurdum por um então cada vez mais frequente reductio ad hitlerum, que remetia uma opinião, qualquer que fosse, para o inapelável reino do inadmissível e do indiscutível pelo simples facto de ter sido partilhada por Hitler. Strauss sabia bem de quem falava e do que falava; hoje, mesmo para quem não sabe de quem fala ou do que fala, os “maus” de qualquer fita são, por inerência, “hitlerianos” – até para poderem corresponder à encarnação do mal absoluto que o maniqueísmo das guerras exige. Só sendo hitlerianos, nazis ou fascistas, podem isentar-se da raça humana e passar a ser Unmensch (como outrora os judeus para Hitler), logo, legitimamente elimináveis. Talvez por isso, no actual conflito, os contendores de um e de outro lado se acusem mutuamente de nazismo, fascismo e hitlerismo.

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Assim, Putin que, como “o mau” desta fita tem vindo a ser insistentemente comparado com Hitler, devolve a acusação às milícias ucranianas mais radicais, como o chamado Batalhão Azov, símbolo supremo da nazificação de uma Ucrânia que urge “desnazificar”. De facto, e como que corroborando a tese de Putin, Cora Engelbrecht, em “Far-right militias in Europe plan to confront Russian forces” (New York Times 25-02-20202), cita o site Intelligence Group para noticiar que o Batalhão Azov convidou voluntários estrangeiros para se juntarem às forças ucranianas no combate aos invasores russos, e que líderes dessas milícias de extrema-direita, em França e na Finlândia, fizeram apelos à mobilização dos seus simpatizantes.

Entretanto, os principais partidos europeus da direita nacionalista, como o Rassemblement Nacional, de Marine Le Pen, e o Vox de Santiago Abascal, mostram-se críticos de Putin, com Giorgia Meloni, dos Fratelli d’Italia, a solidarizar-se inequivocamente com o Ocidente e a Ucrânia na conferência conservadora de Miami. E o mesmo fizeram quase todos os conservadores “iliberais”, encabeçados pela “iliberal” Polónia, de portas e braços abertos aos refugiados.

Talvez por isso o presidente Zelensky, no seu apelo internacionalista a voluntários para defender a Ucrânia, evite linhas vermelhas ideológicas. Ao contrário, os organizadores da manifestação pró-Ucrânia em Lisboa convidaram o Partido Comunista Português, que votou contra a Ucrânia no Parlamento Europeu, e o Bloco de Esquerda, que se absteve, e não convidaram o CHEGA, que apoiou Kiev. Ou seja, como estava decidido que era Putin o nazi-fascista, convocavam-se os anti-fascistas do costume.

Ideologia e realidade

Todo este delirante folclore ideológico vem lembrar-nos, não só que todas as guerras precisam de bons e de maus – e de maus que sejam a própria encarnação do mal –, mas também que o centro do conflito aqui não é ideológico mas nacional e geopolítico. A Rússia sentiu-se ameaçada por uma Ucrânia que podia servir de base a um ataque “ocidental” ao seu Heartland; e a Ucrânia, incomodada pelos russos e russófilos do Donbass, que não tem tratado exemplarmente, pagou as custas do “medo” russo. E para melhor justificar a ajuda das democracias euroamericanas, proclamou a sua luta pela independência como uma luta “pela liberdade e pela democracia”. A leste, e para confundir mais ainda os alinhamentos ideológicos, os governos “iliberais” que, no passado, sofreram às mãos da Rússia e a têm por perto, juntaram-se à cruzada das democracias liberais euroamericanas, que os têm ostracizado na batalha das ideias.

É curioso como, apesar das profecias dos Fukuyama e Hariri, a nação, as fronteiras, as identidades continuam a ser a razão primeira e principal das lealdades e dos conflitos, mais do que as indispensáveis narrativas de cobertura que, de ambos os lados, distinguem os partidários do bem dos partidários do mal, como quem distingue os iluminados dos bárbaros, os fiéis dos infiéis os humanos dos sub-humanos. Talvez para os globalistas mais eufóricos identidades e fronteiras sejam águas passadas, mas a verdade é que, se a natureza humana não muda muito, a natureza dos Estados e dos povos também é capaz de não ser muito diferente. Assim, não será tanto porque evoluímos e nos tornámos mais pacíficos, racionais, tolerantes e inclusivos que hoje deixámos de recorrer mais à guerra, mas porque, muito prosaicamente, não queremos que NOS caia em cima uma super-Hiroxima. Da mesma maneira, ninguém no “Ocidente” parece importar-se muito com os povos da Ásia, da África e do Médio Oriente, vítimas de guerras e invasões de europeus, russos e americanos – talvez por estarem longe e não fazerem parte da “civilização liberal e democrática”.

As narrativas ideológicas invocadas por Putin, como a “desnazificação” e a “desmilitarização”, a par da memória do Império soviético cristalizada em certas esquerdas, tinham tudo para fazer do Presidente russo um antifascista e um pacifista de primeira ordem. Mas não. No entanto, quererá isso dizer que a sua conduta é inexplicável ou puramente maléfica? Ou que os defensores da Rússia são partidários do mal absoluto e todos os outros arautos do bem?

Ainda que as “sociedades de informação” se tenham transformado em palcos de histeria colectiva, onde quaisquer argumentos que saiam da bipolarização maniqueísta incomodam, quando não indignam, “o público”, há aqui uma distinção que não pode deixar de fazer-se: explicar as raízes de uma conduta não é defendê-la.

Explicar não é defender

George Kennan, quando escreveu o “Longo Telegrama” para explicar a Rússia e a URSS e os comunistas soviéticos e Estaline ao State Department e depois aos americanos e ao mundo, não estava a ser “russófilo” nem a defender ou justificar Estaline, a Rússia e o Comunismo. Estava a explicá-los. E, graças a ele, a Contenção funcionou. Kennan, que era inteligente, independente e prudente, anteviu, a partir da História, as possíveis consequências trágicas dos entusiasmos clintonianos e neoconservadores. Consequências que desabam agora sobre a Ucrânia.

Os actuais dirigentes do Ocidente, com raras excepções, são políticos profissionais alheios à História. Pior, acham que a História começou quando chegou a televisão e a democracia liberal. Para trás, ficaram tempos de barbárie, de opressão, de guerra, longe da Idade de Ouro que as novas máquinas e até a possibilidade científica de o homem vencer a própria morte vieram inaugurar. A história das “profecias” não cumpridas, como a de Augusto Comte, que previu que a Indústria ia acabar com a Guerra, não os comove especialmente.

A Paz ou a convivência pacífica são bens frágeis e trabalhosos que só se constroem a partir da verdade e da realidade, por mais duras e menos lisonjeiras que sejam. Por isso, se quisermos entender a História numa perspetiva de racionalidade e realismo, temos de partir do princípio de que a auto-preservação é uma regra poderosa, não só dos seres vivos, mas também dos povos, e dos povos que atingiram a comunidade política, o Estado.

A Rússia passou no último século e meio por um processo de ascensão e queda complicado e traumatizante: a derrota na guerra da Crimeia, em que se sentiu atraiçoada pelas nações cristãs, França e Grã-Bretanha, que se aliaram aos turcos contra ela; um processo revolucionário longo seguido do assassínio pela esquerda radical dos reformadores, Alexandre II e Stolipin; uma revolução e uma guerra civil sangrentas. A construção da utopia comunista transformou-a num vasto campo de concentração e num matadouro dos seus próprios filhos. A Ucrânia, então República Socialista, foi das mais barbaramente tratadas pelos Planos Económicos da Central Comunista, que lhe confiscaram as reservas alimentares para exportar e financiar a Industrialização. Foi o Holodomor.

A invasão hitleriana foi mais uma punição para a Rússia. No final, com a conquista e ocupação da Europa Oriental, veio o Império Soviético – que ampliou o seu domínio, capitalizando e explorando a ideologia comunista e esmagando impiedosamente os rebeldes (como os húngaros, em 1956). Se era o comunismo que servia a Rússia ou se era a Rússia que servia o comunismo é uma longa discussão.

De qualquer foram, a Rússia perdeu a Guerra Fria, que só foi fria por causa das armas atómicas dos dois protagonistas – Ocidente/Estados Unidos, Leste/URSS –, o Império desfez-se e seguiram-se 10 anos de profunda humilhação, nos tempos de Yeltsin. Humilhação objectiva ou subjectiva, pouco importa, importa que os russos a sentiram.

Putin, um quadro médio do Império que viu esse Império desfazer-se (e não deve ter gostado) tornou-se há vinte anos o líder supremo da Nova Rússia: melhorou a economia, investiu na renovação das Forças Armadas, e geriu com eficácia os trunfos que tinha – oil and gas e armamento. Usou a força militar na Geórgia, na Síria e na Crimeia cirurgicamente, e teve sucesso. Internamente, fez uma aliança com a Igreja Ortodoxa e, nessa linha da ortodoxia, inscreveu o nome de Deus na Constituição na reforma de 2020 e prosseguiu políticas conservadoras em relação às “causas fracturantes”, em flagrante contraste com as políticas da actual Administração americana. A Rússia é um Estado autoritário cujo Presidente concentrou em si o poder sobre o partido dominante, a Administração Pública, as Forças Armadas, a Comunicação Social. E Putin deixou bem claro aos oligarcas que podem enriquecer e gozar da riqueza mas que não podem defender ou patrocinar políticas alternativas às do Estado.

Dois Impérios

Olhando para Rússia, podemos dizer que estamos perante um “Império infeliz” e detectar nessa “infelicidade” razões, motivos ou raízes para uma percepção de injustiça e ressentimento perante a História e alguma vontade de rectificação. Bem ao contrário, os Estados Unidos foram, desde há mais de um século, um “Império feliz”; uma República imperial, como Roma, um Império invisível mas dominante, com vicissitudes, com altos e baixos, com formas de domínio de soft power, mas com múltiplas intervenções militares quando foi preciso e até quando não foi.

Depois da guerra com a Espanha, em 1898, os EUA anexaram Cuba, Porto Rico, as Filipinas, parte das Caraíbas e o Canal do Panamá. Através do “Império invisível” de Hollywood e da Banca mundial, foram hegemónicos, usando a guerra quando necessário, umas vezes bem, outras vezes mal – Coreia, Vietname, Iraque, Afeganistão. Estão agora a preparar-se para enfrentar a China, um poder ascendente, não-democrático, não euroamericano, não-cristão, oficialmente comunista mas, na prática, capitalista de direcção central. No entanto, por várias razões, os EUA estão agora internamente divididos ideologicamente. Entre os promotores da Agenda Woke e similares e os Evangélicos e os partidários do law and order, as tensões são grandes e inconciliáveis.

Nesse sentido, o conflito com a Rússia não podia vir em pior altura: Biden, apesar do silêncio complacente dos media, tem vindo a descer em popularidade, e a pandemia, que, a crer nos mesmos media, teria subitamente acabado com a saída de Donald Trump, continua a fazer estragos. A Administração americana, refém da minoria ideológica radical do Partido Democrático – aparentemente mais preocupada, no sector militar, com a discriminação dos transgender na tropa, do que com o resto –, ainda que tenha muitos académicos e alguns políticos transitados da Administração Obama, não parece especialmente focada no confronto geopolítico.

Perante esta América e o seu “imperialismo feliz” e uma Europa também em progressiva divisão ideológica e radicalização interna, uma Europa no pós-pandemia e a pagar o preço da conversão energética para “salvar o planeta”, a Rússia parece politicamente unida ou, pelo menos, unida a nível institucional.

Frente a frente

Aparentemente, Putin preparou-se para resistir às previsíveis sanções económicas ocidentais e tem o claro apoio da República Popular da China, que segue oficialmente a situação com comunicados confucianos.

Segundo o “South Asia Index”, a Rússia convidou já a República Popular da China para o grande congresso de Agosto, destinado “a combater o fascismo” – além da Índia, da Arábia Saudita, dos Emiratos Árabes, do Paquistão, do Azerbaijão, do Usbequistão e da Etiópia …

De fora do congresso anti-fascista de Putin ficará seguramente o Irão, podendo eventualmente vir a alinhar com a frente ocidental pró liberdade e democracia de Biden – ou assim nos garantiu o Presidente norte-americano no seu discurso do Estado da União do passado dia 1 de Março: “Putin may circle Kyiv with tanks, but he’ll never gain the hearts and souls of the Iranian people.” (sic)

Vivemos tempos incertos e perigosos.

É bom deixar claro que a invasão da Ucrânia pela Rússia é uma agressão condenável, acima de tudo pelo sofrimento causado a milhões de civis, apanhados no meio do conflito. Desencadear uma guerra ao abrigo implícito da chantagem pelo nuclear abre um precedente que pode ter consequências catastróficas.

Tudo indica que a Rússia tentará, nos próximos dias, obter uma vantagem no terreno, nomeadamente a sul, fechando o acesso da Ucrânia ao Mar Negro e mantendo Kiev e Khirkiv sob pressão. Isto vai traduzir-se em mais mortes, mais refugiados, mais destruições urbanas. O Presidente russo sabe também que o tempo correrá, a partir daí, contra ele, com possíveis brechas na sua frente interna – não só a nível popular como da hierarquia partidária e militar.

Zelensky vai tentar, neste período, uma escalada-envolvimento que acabe por comprometer política e militarmente a NATO, mesmo com os riscos de uma guerra nuclear – riscos que, na Europa e nos Estados Unidos, ninguém, governantes ou povo, quer correr.