Maquiavel, em Il Principe, insistia em que as fundações de todos os Estados, velhos ou novos, eram “as boas leis e as boas armas”. Ora as armas tanto podiam ser do Príncipe, como de mercenários – sendo que os mercenários eram geralmente “inúteis” e “perigosos”: na paz era-se espoliado por eles, na guerra, pelos inimigos:

“Se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis;[…] não têm temor a Deus e não têm fé nos homens”.

O primeiro pensador do Estado moderno deixava assim clara a sua desconfiança em relação às tropas mercenárias, que eram a regra na Itália de e nos exércitos do seu tempo.

Um mês antes da sua morte, a realidade viria dar-lhe razão: a 6 de Maio de 1527, a Cristandade assistia horrorizada ao saque de Roma pelos lansquenetes alemães de Georg von Fründsberg que, ao não serem pagos a tempo e horas pelo catolicíssimo Carlos V, cometeriam as maiores atrocidades na Cidade Santa, vandalizando e destruindo igrejas, assassinando civis e violando religiosas. É que à revolta dos mercenários luteranos pelos salários em atraso juntara-se o seu zelo reformador contra a capital dos “papistas”.

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E, no entanto, poucos anos antes de os soldados de von Fründsberg se terem dedicado a estes latrocínios, celebrizara-se, pelas melhores razões, um outro condottiero de mercenários, Giovanni delle Bande Nere.

Giovanni era filho de um outro Giovanni – Giovanni di Pierfrancesco de Medici, “Il Popolano”, epíteto que ganhara por ter sido relegado para a plebe quando do seu apoio ao excomungado e incinerado frade dominicano Girolamo Savonarola. Fosse como fosse, nobre ou “popolano”, Pierfrancesco de Medici veio a casar-se com Catarina Sforza, dos Sforza de Milão, e a gerar Giovanni delle Bande Nere, o condottiero. Nos princípios do século XVI, os Medici, descendentes de Lourenço, o Magnífico, conseguiram dar à Crisstandade (e à família) dois papas, Leão X e Clemente VII. Familiarizado desde o berço com Giovanni e conhecedor dos seus belicosos talentos e proezas (aos 12 anos matara um homem numa rixa), Leão X nomeou-o comandante das tropas mercenárias da Santa Sé. À frente dos mercenários papais, Giovanni começou logo por derrotar Francesco della Rovere, duque de Urbino. Depois da morte de Leão X, Giovanni delle Bande Nere decretou que os guerreiros papais passassem a usar “bande nere” nos uniformes e bandeiras, em sinal de luto, e comandou-os por muitas e vitoriosas batalhas. Ferido em combate e amputado, viria a morrer vítima de infecção.

Até à levée en masse da Revolução Francesa, grande parte das batalhas na Europa eram travadas entre mercenários. Foram os mercenários suíços, recrutados nos cantões da Confederação a partir da fase final da guerra dos Cem Anos, que derrotaram Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, na batalha de Nancy; e a partir dos finais do século XV surgiam no mercado da guerra os alemães, com os Lansquenetes, que usavam o mesmo equipamento dos suíços – as lanças compridas dos peões em formação cerrada, ao modo dos soldados macedónios de Filipe e Alexandre com as sarissas.

Georg von Fründsberg organizou os primeiros contingentes de lansquenetes para o Imperador Maximiano I de Habsburgo e tornou-se o grande comandante dos Habsburgo. Era ele que estava à frente dos lansquenetes amotinados que marcharam sobre Roma em 1527. Viria a morrer meses depois no seu castelo de Mindelheim, com o choque da revolta dos seus homens – os saqueadores de Roma.

Mas os mercenários, quando eram pagos a tempo e horas, combatiam, e combatiam bem. Lembre-se a aflição de Carlos V com o soldo dos seus mercenários, temendo que se revoltassem e desertassem nas vésperas da batalha de Pavia, e a sua urgência em socorrer-se do dote da princesa Isabel de Portugal, filha do nosso D. Manuel I, com quem viria a casar.

Em Agosto de 1792, também os cerca de 900 guardas suíços de Luís XVI de França que defendiam o Palácio das Tulherias se bateriam bem, na razão de um para vinte, frente à multidão revolucionária, apoiada pela Garde Nationale. Metade morreria em combate e os que se renderam foram chacinados pelos revoltosos. O seu comandante, Karl Joseph von Bachmann, foi preso e guilhotinado em princípios de Setembro.

Foi a partir da Revolução Francesa e da progressiva adopção da conscrição nas monarquias constitucionais europeias que o recurso a mercenários declinou. Ao longo do século XIX, foi-se estabelecendo uma cultura de cidadania em que, a par do direito de voto e da alfabetização, veio a ideia de que os homens válidos deviam prestar serviço militar. Era um regresso ao cidadão-soldado romano.

Os novos mercenários

Porém, no século XX, depois das grandes guerras mundiais e do fim dos impérios coloniais e da Guerra Fria, houve uma acelerada evolução para l’armée de métier, composta por voluntários contratados; voluntários nacionais pagos, profissionais.

Nos Estados Unidos, durante a guerra do Vietname, a fuga dos jovens universitários ao serviço militar, como refractários, tinha já vindo pôr em causa a “all-voluntary force”; e com as guerras do Iraque e do Afeganistão surgiram em força as chamadas Private Military Companies, uma espécie de forças supletivas contratadas para exercer determinadas tarefas em coordenação com as chefias das forças regulares, uma espécie de parcerias público-privadas na área da Defesa.

Num tempo de declínio dos valores patrióticos, parece ser mais fácil morrer pelo emprego do que pela pátria. Além disso, com a causalidade variada das guerras imperiais e com um “império invisível” como o americano, a contratação de profissionais civis, principalmente para missões paramilitares, começou a impor-se.

Os franceses e ingleses também tiveram e têm companhias de mercenários, companhias militares privadas que, por vezes, actuam em ligação com os respectivos serviços de Inteligência. Uma das mais famosas foi a sul-africana Executive Outcomes, que teve um papel importante nos anos 90 do século passado na guerra civil angolana.

Com o fim da União Soviética e o licenciamento de muitos militares das forças especiais, a Rússia teve um excesso de ex-militares canalizados para tarefas de segurança privada, de aconselhamento securitário e de protecção pessoal.

Foi um destes militares, o tenente-coronel Dimitri Utkin, que fundou o Grupo Wagner. Utkin esteve ligado às forças especiais e à Inteligência militar e combateu na guerra civil síria. Terá sido sua a ideia de fundar a Wagner e de baptizar a companhia com o nome do grande compositor alemão – que, com Hitler, ganharia a fama, glosada por Woody Allen, de ser a inspiração perfeita para toda e qualquer “operação militar especial” (“I can’t listen to that much Wagner. I start getting the urge to conquer Poland.”).

Depois da Síria, a partir de 2014 e já como Grupo Wagner, Utkin e outros oficiais terão passado pela Crimeia e auxiliado os separatistas do Dombas. Por volta de 2017, Yevgeny Viktorovich Prigozhin tomou conta do Grupo, que, entretanto, se internacionalizara com a bênção do Kremlin, multiplicando as operações em África e no Médio Oriente.

A vantagem das companhias militares privadas é servirem, ou poderem servir, a política dos Estados sem os implicar oficialmente. Os serviços de Inteligência franceses e ingleses usaram-nas em “operações discretas”, sobretudo em África, e os russos copiaram o modelo.

As revoltas de mercenários têm uma longa história e estão quase sempre ligadas a atrasos salariais ou falta de condições laborais. A mais famosa e terrível de todas as revoltas de mercenários, que Flaubert romanceou em Salammbô, foi a dos mercenários de Cartago, vencidos por Amílcar Barca (pai de Aníbal) e cruelmente castigados em 241-237 AC. Séculos depois dos lansquenetes de von Fründsberg, contemporâneos de Maquiavel, também os mercenários ingleses do exército liberal de D. Pedro, no Cerco do Porto (1832-33), se amotinariam, mas sem incidentes de maior.

O dilema de Putin

A revolta de Prigozhin tem o seu quê de novelesco: a razão principal pode enquadrar-se nas clássicas razões da quebra de condições contratuais. O patrão da Wagner estava há semanas a queixar-se do Ministro da Defesa e do Chefe do Estado-Maior da Federação Russa, dizendo que os seus homens não eram devidamente apreciados e respeitados, não recebiam alimentação nem municiamentos adequados e eram usados como carne de canhão. Ia também dizendo que a “operação militar especial” ora era uma brincadeira branda a que era preciso dar gás, fazendo guerra a sério, ora era um erro de cálculo e de estratégia baseado em informações falsas.

Até ao dia 24 de Junho, eram só queixas e lamentações, por vezes duras, mas não tocando nunca o Presidente e Chefe, Putin. Entretanto, parece que o que estava em marcha era o desaparecimento da Wagner como companhia militar privada a partir de Julho, e a integração dos seus efectivos no complexo da Defesa Nacional oficial.

Obedecerá o golpe de Prigozhin, como pretendem alguns analistas, não a uma reivindicação laboral mas a um plano político com meses de preparação? Terá sido produto do deslumbramento e da sobrevalorização do próprio poder e influência de um chefe mercenário imprevisível e emocionalmente instável, que, num ímpeto, resolveu desafiar uma estrutura estadual poderosa e sofisticada? Teria cúmplices e cumplicidades que falharam à última hora, como já tantas vezes aconteceu na História?

O golpe não foi incruento: houve helicópteros e um avião do Governo abatidos, os ânimos de parte a parte aqueceram e estiveram à beira do choque. O “homem-forte” da Bielorrússia, Lukashenko, veio mesmo a calhar para mediar uma solução temporária, que evitou uma confrontação que poderia ter tido consequências trágicas, não só para a Rússia, mas para todo o mundo. Porque, como sublinha a revista Limes, se os americanos, num primeiro momento, pareceram eufóricos com a situação e com a divisão da Rússia, depressa concluíram que “a Rússia nas mãos de um criminoso qualquer, ou palco de um confronto entre vários bandidos” seria “um perigo para todos”, com “muitas mãos a agitarem-se em volta de um botão nuclear”.

Com Prigozhin na Bielorrússia e os Wagner livres para escolher entre permanecerem Wagner e ingressarem nas operações asiáticas ou africanas da companhia, integrarem-se no Exército russo ou irem para casa, os polacos e os lituanos, no flanco leste da NATO, estão inquietos com a vizinhança.

Entretanto, a sorte de Prigozhin parece abrir um dilema quase trágico para Putin: ou pune Prigozhin e os seus cúmplices próximos, faltando à amnistia prometida e podendo causar a revolta do Grupo Wagner; ou cumpre o acordo e mostra fraqueza, o que, para um “líder autoritário”, pode ser uma contradição fatal.