Não é a primeira vez que a dominação exercida pela igreja católica em Portugal é posta em causa desde a criação do reino enquanto grande responsável do atraso socioeconómico do país. Com efeito, não é menos verdade que a dominação da tutela inquisitorial sobre a governação do país só no final do século XVIII conheceu a primeira tentativa de morigeração.

É certo que a inquisição foi abolida com início do liberalismo no século XIX assim como a diferença entre «velhos» e «novos» cristãos! Dito isso, o desafio ao catolicismo como travão à modernização durante o período liberal cessou com a ditadura militar e o corporativismo a partir de 1926 até 1974. Pelo seu lado, a instauração do regime demo-liberal não impôs qualquer limitação às práticas religiosas nem limitou a expansão da educação e do patronato católico como sucede neste momento com a próxima vinda do papa a Portugal!

Não admira, pois, que a investigação aos comportamentos sexuais de violação de crianças por inúmeros membros da corporação católica no mundo inteiro tenha sido adiada durante anos em Portugal e a respectiva comissão não tenha conseguido, apesar dos seus esforços, informação comparável à do resto do mundo tanto em número de vítimas como a identificação de qualquer figura proeminente da Igreja portuguesa, a qual tem resistido denodadamente às limitadas mas incontornáveis conclusões da comissão de inquirição portuguesa.

No actual momento, não há sinais de próximo aprofundamento acerca dos crimes cometidos contra as crianças e jovens de ambos os sexos física e moralmente violadas em segredo nas últimas décadas. Em consequência, poucas ou nenhumas das vítimas tiveram oportunidade de denunciar os prevaricadores nem de receber o justo reconhecimento público dos crimes cometidos contra eles nem foram prometidas, como já se percebeu, quaisquer compensações por parte da igreja católica portuguesa!

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De uma coisa podemos desde já ter a certeza: não serão o presidente da República nem os chefes dos dois «grandes partidos», que têm dividido entre si a maioria dos votantes desde o 25 de Abril, que levarão os agentes de investigação, os advogados e os juízes a fazer, a partir de hoje, algo de significativo contra os horrendos crimes cometidos por um considerável número de agentes da igreja católica, conforme tem vindo a suceder cada vez mais nos países estrangeiros!

É ou devia ser a vez de a igreja católica se sentar no banco dos réus: os crimes de que os seus agentes são culpados não são, com efeito, da exclusiva responsabilidade pessoal de cada um, mas sim da decisão colectiva tomada – há não tanto tempo como isso! – de proibir o casamento dos padres a partir da criação da Inquisição e do concílio de Trento reunido desde meados do século XVI em resposta à Reforma Protestante…

Foi pois há menos de cinco séculos que essa «revolução» teve lugar. A decisão nada teve, aliás, de místico e tudo de organizativo, se assim podemos chamar-lhe. Com efeito, a proibição matrimonial dos padres da igreja católica não deixa de ser um equivalente, porventura menos brutal, da esterilização dos chamados eunucos orientais (Gellner, 1983)! O celibato dos agentes católicos reside, pois, desde os padres até ao papa, na impossibilidade não só de ter filhos legítimos como sobretudo transmitir bens e/ou poder… A partir do Renascimento, foi assim que a igreja católica sobreviveu sem herdeiros naturais e sem vida sexual assumida!

A partir daqui, a sexualidade, seja dos padres como dos monges e monjas, torna-se uma prática interdita impeditiva não só da continuidade de sangue como dos bens e do poder. Quase involuntariamente e, sem dúvida alguma, transgredindo todos os princípios da regulação sexual humana, a solidão dos agentes religiosos não só os levou a práticas proibidas, como a violação de menores, mas todos os princípios que regem a sexualidade humana!

Voltando do céu à terra, é infelizmente de temer que os vastos poderes da hierarquia católica, a qual tem em grande medida dominado Portugal há quase mil anos, bem como o das hierarquias judiciais e policiais, desde o polícia da freguesia até ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, é seriamente de temer – dizia eu – que tais corpos continuem a nada fazer para por termo ao actual escândalo. Antes pelo contrário!

Quanto aos poderes políticos nacionais, ao contrário dos países onde o catolicismo tem menos poder e as suas práticas mais infames têm vindo a ser condenadas, continuam a ser dominados pelo poder da igreja e fogem a pôr fim ao escândalo. Não é à toa que são tão poucos os queixosos e que nem um nome de prevaricador tenha vindo ao de cima. Não creio, efectivamente, que daqui a um ano voltemos a ouvir falar no assunto, assim como não faz sentido que o actual primeiro-ministro sugira que o comportamento denunciado tenha lugar fora das igrejas… Isto também faz parte do nosso secular atraso!