Na passada semana o mundo assistiu pelas televisões e capas de jornais a uma rentrée política europeia. Três importantes líderes europeus, Merkel, Hollande e Renzi, juntaram-se para anunciar o futuro da Europa após o Brexit, curiosamente ainda não concretizado e do qual se desconhecem as condições temporais, técnicas e jurídicas em que terá lugar.
Segundo os seus assessores, o local escolhido pelos três líderes teve em conta vários aspetos simbólicos, entre os quais: ser numa ilha no Mediterrâneo, Ventonete; ser o local da antiga prisão onde estiveram detidos durante a Segunda Guerra Mundial dois importantes europeístas, Ernesto Rossi e Altiero Spinelli, onde escreveram o famoso Manifesto Federalista, então conhecido por Manifesto Ventonete e a reunião decorrer a bordo de um porta-aviões com o nome icónico de Giussepe Garibaldi, o herói romântico que unificou a nação italiana na segunda metade do século XIX (Resorgimento).
Infelizmente, o terramoto que acabou por se abater sobre o centro de Itália quase fez esquecer mais este “histórico” encontro entre o clássico eixo franco-germânico e o atual líder do governo italiano. Este último, aliás, terá dentro de portas, em novembro, um referendo sobre o sistema político, cujo resultado, inevitavelmente, poderá trazer mais uma sombra à atual “agonia da Europa”, para usar a expressão de Maria Zambrano no seu premonitório ensaio de 1940.
Ainda assim, apesar deste inesperado varrimento mediático, o dito encontro, para alguns apenas mais uma tentativa de fuga em frente, uma tentativa desesperada para resistir à vaga populista e radical que começa a alastrar, justifica uma maior atenção. Desde logo porque, se esse era o objetivo central neste reinício de ano político europeu, as declarações dos três intervenientes, não podiam, ser mais desencontradas: “temos de regressar à Europa dos valores contra a finança” (Renzi); “o maior risco que temos na Europa é o risco da fragmentação e do egoísmo” (Hollande); ou, por fim, “a Europa ainda não se tornou o local mais competitivo para muitos sectores” (Merkel).
A União Europeia, concorde-se ou não, apesar das suas naturais fragilidades, tem sido um projeto de bem-estar, paz e solidariedade entre os europeus, após duas grandes guerras que devastaram o continente no espaço de duas gerações (1914 a 1945). Como projeto político, económico e sobretudo jurídico tem sido ainda um modelo singular de integração de nações na construção de um original tipo de império benigno, exemplar na história da humanidade. A sua construção e consolidação têm na base o modelo ordoliberal de origem germânica que perante cada novo problema encontra uma nova construção normativa que através do efeito spill over, acaba por impregnar as ordens jurídicas, os mercados e os sistemas administrativos dos diferentes Estados-membros.
É este acquis que é preciso defender. Ou seja, nós não precisamos de continuar a inventar novas soluções ou a anunciar mais integração, nós precisamos é de consolidar e melhorar o que já conquistámos neste inigualável percurso de prosperidade. Como disse Zygmunt Bauman, na sua obra Europa, uma aventura inacabada, “a Europa não é algo que se descubra, mas uma missão (…) Talvez um trabalho sem fim, um desafio eternamente a ser vencido, uma expectativa jamais alcançada”. Conseguir garantir o patamar que já alcançamos, só isso, garantir isso, já será um grande desafio, uma grande conquista, que impedirá o temido regresso ao “mundo de ontem” (Stefan Zweig).
Ora, é aqui que esta tentativa de rentrée política falha o seu objetivo. Na verdade, usar a metáfora da ilha no mediterrâneo para cenário do encontro acaba por transformar a Europa na imagem da ilha-fortaleza ou grande “ilha-continente”, dos alvores da geopolítica dos anos trinta, quarenta, do século passado. A Europa como ilha acossada pelos emigrantes e refugiados, vivendo a decadência após séculos de domínio mundial é a melhor metáfora para o espírito do tempo em que vivemos. Aliás, os arautos antiglobalização, que pedem o regresso das fronteiras, a defesa dos nacionalismos, das raças e que demonizam a cultura cosmopolita, não podiam ter melhor cenário para evidenciar o acantonamento dos atuais líderes “moderados” da União.
Tratando-se de uma ilha que foi prisão, num Mediterrâneo onde tantos acabam prisioneiros do destino mais adverso, incluindo a morte e a deportação (desde janeiro deste ano já morreram na suas águas mais de três mil pessoas a tentar alcançar a paz), não podíamos estar perante pior cenário para quem defende um futuro europeu mais solidário e risonho.
Escolher um navio militar para o encontro, não pode ser mais premonitório do regresso ao clima bélico em solo europeu (por coincidência, a outra grande notícia da semana foi que os alemães voltaram às medidas de defesa civil introduzindo a obrigação familiar de guarda de alimentos e água para dez dias). Fazer o encontro a bordo de um porta-aviões só pode reforçar o contexto de angústia em que se vivem os atuais tempos sombrios da União.
É certo que a escolha do porta-aviões parece ser resultante de este ter o nome do herói italiano Giuseppe Garibaldi. Apesar de todo o entusiasmo que isso ainda suscita nalgumas mentes menos prevenidas, convirá lembrar que Garibaldi foi o símbolo maior da vaga de nacionalismos que acabou por varrer a Europa durante a segunda metade do século XIX e que levaria, mais tarde, a Europa à sua “grande “guerra civil”, espelhada em milhões de mortos nas duas guerras mundiais. Garibaldi com toda a valentia e glamour da sua “camisa vermelha” (inspiradora de onda semelhante na América do Sul de Simon Bolivar), não poderia ter sido pior escolha quando se quer continuar um projeto europeu, evitando o regresso aos nacionalismos.
Aliás, esta questão do nacionalismo não é de somenos, pois muitos dos que hoje questionam o seu regresso fazem-no em nome da democracia, esquecendo-se precisamente que foi o alargamento e a consolidação da mesma democracia que acabou por promover o pior do nacionalismo: a delimitação das fronteiras político-administrativas. Com efeito, as fronteiras na sua configuração moderna foram criadas para delimitar os intervenientes na cidadania ativa e passiva, isto é, definir claramente quem podia votar e ser eleito em cada espaço nacional e, após a vitória dos autoritarismos e a consequente guerra, delimitar o amigo do inimigo (Carl Schmitt), circunscrever e excluir o estrangeiro. No fundo o nacionalismo veio fazer a grande delimitação do medo, do ódio ao que é diferente, ao que é estranho, atitudes que parecem estar a regressar à marca europeia.
Enfim, se a Europa precisa de um impulso político sólido, ainda que não necessariamente de uma qualquer onda federal para sair da agonia, do labirinto em que se encontra, nada mais inconveniente do que o apresentar numa ilha. Ainda mais grave se essa for uma ilha fardada, quase saudosamente alemã (Die Insel).
José Conde Rodrigues é professor universitário