Enquanto nos nossos pequenos reinos discutimos o regresso do comunismo e do nacionalismo, embora com outros nomes mais suaves que redundarão em menos riqueza para todos e mais impostos para alguns, menos bem-estar para alguns e em menos liberdade para todos, importa perguntar pela verdadeira sede do poder na Europa.

Para isso pareceu-me interessante recorrer a uma metáfora para identificar a sede do verdadeiro poder europeu e assim perceber porque é que a discussão e aprovação, entre nós, de mais um orçamento de Estado, não passa de um detalhe incontrolável na vida da “Terra Média” europeia.

O professor Adriano Moreira sempre ensinou, nas suas lições de ciência política, que mais do que a forma do poder, importa encontrar e ter em conta a sede desse mesmo poder. E neste caso é o Banco Central Europeu quem tem “a chave do reino”. É nele que reside a verdadeira sede do poder nesta fase da União Europeia.

Obviamente que, ao considerar o Banco Central Europeu como a verdadeira sede do poder e o seu atual presidente como o Senhor dos Anéis estou a usar de forma metafórica a narrativa da aclamada obra de J. R. R. Tolkien, publicada nos anos cinquenta do século passado e popularizada no início deste século, pela trilogia de filmes de Peter Jackson, sob o mesmo título.

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Trata-se do meu ponto de vista, de uma metáfora bem ilustrativa do atual momento europeu. Na verdade, estamos todos dependentes de uma entidade superiormente escolhida, de carácter pericial ou técnico que se sobrepõe ao poder político dos Estados e condiciona as suas decisões políticas.

E tal domínio é exercido pelo Banco Central Europeu, quer através do controlo do valor e do fluxo da moeda quer através da regulação e supervisão financeiras (através da nova União Bancária) e, mais importante ainda, por via dos novos instrumentos como o “Securities Market Program” das “Outright Monetary Transactions”, criados para responder à crise de 2008/2010.

Mas o grande poder, o poder do verdadeiro “Anel” mais forte, encontra-se na capacidade do presidente Draghi em criar confiança nos mercados financeiros, isto é, no sistema circulatório que garante a sobrevivência das diferentes economias nacionais. Uma palavra do novo Senhor dos Anéis significa a vida ou a morte de qualquer economia em dificuldade, bem como da zona Euro no seu todo. Foi isso, aliás, que aconteceu em julho de 2012, aquando da sua histórica afirmação de que faria “whatever it takes” para salvar a moeda europeia e a estabilidade do seu sistema financeiro. E desde então, toda a gente o considera o salvador desses importantes desígnios europeus.

Para países como Portugal, a palavra de Draghi, constitui mesmo uma espécie de suporte básico de vida ou última amarra ao cais de um país viável e de uma sociedade decente. Ainda recentemente um jornal económico do nosso espaço público referia em título que o Banco Central Europeu tem “quatro braços que agarram Portugal”.

Mas, se este é o lado bom, positivo, de garante do funcionamento diário do espaço da União, o papel do Banco Central Europeu e do seu presidente, isto é, a força do “Anel” tem também um lado negro exigido pelo papel incontornável da austeridade no funcionamento dos Estados e no consequente ajustamento do nível de vida das famílias, bem como na criação de uma dependência perversa no financiamento dos agentes económicos através do controlo severo da inflação e na manutenção de juros extremamente baixos.

Para muitos é este o lado mau que nos mantém estagnados e quase em deflação permanente. Para outros, porém, este é um lado bom pois tem permitido manter-nos vivos. Grande parte da economia europeia vive ligada a uma máquina e essa máquina chama-se Banco Central Europeu com a sua “quantitative easing policy”.

Não deixa de ser no mínimo curioso que se questione a ida de Durão Barroso para o Goldman Sachs e não tenha sido um impedimento a vinda de Mario Draghi do Goldman Sachs para o Banco Central Europeu, passando a ter na mão a verdadeira “Arca do Tesouro” e a posse do “Anel” mais forte.

Mais estranho ainda, se pensarmos que este era diretor do banco para a Europa, na altura que o mesmo ajudou a “esconder” o défice da Grécia perante o Eurostat com as consequências que hoje todos conhecemos e que ainda sentimos na pele.

Se juntarmos a esta curiosidade a circunstância de Jean-Claude Juncker, atual presidente da Comissão Europeia (outro órgão com legitimidade popular apenas indireta) ter sido durante quinze anos primeiro-ministro e/ou ministro das Finanças do Luxemburgo, sede financeira e fiscal de grandes e pequenos investimentos, quase todos apenas de papel, para aí fugirem “legalmente” aos impostos (uma verdadeira “offshore” no centro da Europa), temos na cúpula do poder europeu uma grande coincidência e uma estranha irmandade.

Estas curiosidades não teriam relevância se no Banco Central Europeu Mario Draghi não tivesse o “Anel” com poderes especiais que ajuda e ao mesmo tempo pode sufocar e o Banco Central Europeu não tivesse o ascendente que hoje tem sobre a própria Comissão Europeia.

Argumentar que a utilização desta metáfora é exagerada ou que subestima a sede do poder em Bruxelas (ou em Berlim), e que o Banco Central Europeu apenas cumpre o seu papel de Banco Central tal como todos os bancos centrais importantes pelo mundo fazendo-o com a devida independência poderia justificar-se, não fosse o caso de estarmos perante a ausência de um poder soberano europeu para governar o espaço político comum, bem como para levar a cabo uma gestão económica europeia integrada. O Banco Central Europeu acabou por assumir-se como a única instituição europeia com um poder realmente supranacional.

Da utilização desta metáfora não resulta uma crítica radical contra os mercados ou contra o capitalismo financeiro. Não! Não se trata disso. Simplesmente, a defesa da economia de mercado, do comércio livre e da liberdade de realização individual, não nos podem cegar face à nova reorientação dos poderes na arena internacional e, particularmente, daqueles cujo exercício, mais ou menos desequilibrado, escapa aos adequados freios e contrapesos da legitimação política e que podem prejudicar a nossa própria sobrevivência e dignidade humana.

Nesta “saga” bem real é o poder financeiro que domina, sedeado na “Montanha de Frankfurt”, casa do grande Sauron. E, tal como acontece na saga de Tolkien, a Europa vive hoje uma luta pela posse do “Anel” entre os pequenos e os grandes reinos, luta onde Mario Draghi, qual Senhor dos Anéis, tem, através do seu poder, a última palavra sobre a felicidade ou o sofrimento dos povos da “Terra Média” europeia.

Professor universitário