A eutanásia encontra-se numa rotunda jurídica onde personalidades de convicções contrárias circulam sem cuidado. Cada uma delas está convicta de que o código que regulamenta as suas perigosas voltas é o melhor, é o único, e só a maldade sem limites sustenta uma ideia diferente. Houve tempo em que algumas questões substanciais e elevadas alimentavam o diferendo — a relação do homem com a vida, a vida dos outros em particular, ou a aptidão do altruísmo para se conter a si próprio. Hoje, a discussão está centrada em preceitos legais. Terão sido ultrapassadas as interrogações sobre a licitude que interessa aos homens e ficou cometido aos governos promover a legalidade.
Nesse sentido, uma carta aberta assinada por 250 personalidades exige a regulamentação da lei que permite a eutanásia, ainda retida no Tribunal Constitucional, de modo a que seja possível, de facto, eutanasiar tão prontamente quanto o necessário. A lista de “personalidades” é assim identificada porque o estatuto de personalidade é fundamental para a credibilização das demandas e porque o governo, assim demandado, não se atreverá à indiferença que teria se a carta aberta fosse assinada por 250 populares reunidos no adro da igreja de Trastemira depois da procissão da Senhora dos Bentos. Alguém poderá achar injusto esse hábito de reverência parola que reconhece mais legitimidade a uma lista conhecida de figuras públicas. Poderá ser estranha alguma escassez de médicos e outros homens e mulheres que todos os dias estão junto dos homens e mulheres que vivem, que lutam por viver e que morrem. Mas toda a estranheza será desconsiderada quando se conferir que estão nessa lista políticos de todos os quadrantes, embora mais de um do que dos outros, os cançonetistas do costume, a constitucionalista, a que aspira a uma liderança, os jornalistas.
É possível que uma larga maioria de pessoas não tenha uma opinião inabalável sobre a eutanásia. Que assim seja não é uma evidência que decorra de inquéritos ou sondagens. Percebe-se da hesitação anónima que é perceptível na rua, fora das várias bolhas onde predestinam homens talentosos. Percebe-se de confissões e desabafos que outros homens sem talento vão fazendo no espaço público, com discrição.
Entre as abençoadas criaturas sem dúvidas, a quem uma desconhecida virtude permitiu adquirirem uma opinião firmíssima, existirão algumas a quem essa certeza não dá tranquilidade. É um motivo de esperança. Não é a esperança de que esteja próximo um remate legal que satisfaça as partes e silencie as suas razões. Nem que passe a estar disponível um articulado claríssimo sobre qual é a alínea que se aplica melhor ao doente com critérios para ser considerado um 2C. Não que seja enfim possível enquadrar legalmente o desejo de uma esposa ou de um filho que não suportam a dor do seu familiar e a sua própria. Não que se torne clara a irredutível vontade de morrer no apelo desvairado de quem sofre e quer alívio. Não é nenhuma dessas esperanças fáceis. A esperança que está prometida é para os que não têm tranquilidade, embora não tenham dúvidas; é a esperança de que nenhuma morte seja imposta antes do seu tempo. De que a todos seja permitido chegar o mais próximo possível da eternidade – que é insignificante para o ser humano, mas à qual ele deve respeito e a vontade inconsequente de perseguir.
Mas que dizer daquele que suporta dores insuportáveis? Do que vive em situação de dependência e desespero ditos desumanos, embora ele permaneça humano e à sua volta ninguém tenha perdido a humanidade? Que resposta deve ser dada a quem não pergunta, que apenas nos olhos, quando os consegue abrir, deixa perceber a perplexidade e o medo?
A compaixão com que alguém é ajudado a morrer tem de ser muito grande. É maior do que a do Alma-Grande, que acudia a pedido para despedir do mundo e do sofrimento os sofredores de Riba Dal — e quase nunca fazia asneira. É mais nobre que a do antigo executor do rei, que se atirava aos ombros do enforcado para o salvar da agonia — um gesto misericordioso que partia o pescoço do desgraçado com um estalo súbito e o poupava à prolongada sufocação.
Mas que compaixão será necessária para ajudar alguém a viver? Quem terá inteligência e pele que cheguem para perceber o corpo de outro, o que sente, e esquecer as suas próprias certezas? Quem será capaz de ajuizar num momento de sem razão? Que homem não se esquecerá que dar a morte de maneira regulamentada não é um direito do doente, é um poder que lhe foi dado pela lei?
Desde o princípio do mundo que os homens vivem com incertezas. As incertezas — sobre se Deus existe, sobre quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete, sobre quantas estrelas existem no céu… — têm motivado o pensamento criador e o progresso do conhecimento. A grande maioria das interrogações com que a humanidade tem vivido, as mais importantes, já atormentaram o Homem de Tollund, enforcado não se sabe porquê. E continuariam presentes no cérebro de Hawking no momento em que morreu, porque a sua vida tinha chegado ao fim — tinha sido terrível e fértil, mas tinha chegado ao fim. As incertezas que acompanham os homens não têm sido insuportáveis e só quando a sua resolução administrativa foi imposta se geraram os piores sofrimentos. Foram incontáveis os homens que sofreram por ter sido determinado por lei que o sol andava à volta da terra e que o mar terminava bruscamente numa valeta infinita onde os barcos caíam.
A convicção com que tudo foi afirmado era exatamente a mesma com que hoje tudo se afirma. Já foi definitiva a certeza de terem sido definitivamente vencidas as trevas medievais, ao mesmo tempo que se encharcavam doentes com mercúrio e arsénio. Já foi tão grande a certeza como a presunção com que se fizeram mastectomias radicais, ou se anti-coagulavam todos os AVCs, já foi tão sobranceira como a demonstração científica de que nada mais pesado que o ar poderia alguma vez voar.
Sempre existem homens e mulheres que têm certezas e lutam afincadamente por elas. Se fosse esse o seu tempo, estariam hoje a caminho da Terra Santa atrás de Pedro o Eremita, ou espadeiravam perto de casa, ou catariam lenha para acender fogueiras. Mas o seu tempo é o dos parlamentos, o da ágora sobre a qual Platão teve ideias tão pertinentes. Assim se compreende a carta aberta das 250 personalidades.
A escassez de médicos nessa e noutras iniciativas que promovem a eutanásia é pouco tranquilizadora. Como se numa petição para um aditamento à lei fiscal não figurassem em quantidade significativa economistas e fiscalistas.
Os Países Baixos e a Bélgica foram os primeiros países a legalizarem a eutanásia em 2002. Ambos os países, os Países Baixos em 2005 e a Bélgica em 2014, viriam a rever as suas legislações de modo a incluir crianças como candidatos à eutanásia.
A discussão que antecedeu o produto legislativo foi grande e ainda não terminou. Tem reactivações como as que foram motivadas pelas mortes de Aurelia Brouwers e Zoraya ter Beek. Mas mantém-se a crença na bondade e justiça do procedimento. A noção de justiça é mais recente e convém à moda igualitária, como se alguns dos que vão morrer lamentassem não poder fazê-lo depressa e à sua vontade, algo que realmente ninguém quer. Os termos em que a eutanásia foi apresentada assemelham-se de modo inquietante aos que seriam usados para a apresentação de um produto, uma facility com potencial de mercado – semelhante a qualquer outro produto que um dia alguém descobriu estar em falta desde há muitos anos e, não parecendo, era reclamado por incontáveis consumidores.
Não há qualquer dúvida de que outros países virão a aprovar a eutanásia. Portugal também, porque é muito receptivo a temas avançados e há uma minoria esclarecida que tomou a peito manter o país na vanguarda da insanidade e na cauda da inteligência. Não existem outros cidadãos tão activos, são incansáveis, e um dia conseguirão tocar todos os limites dos seus sonhos. Que os seus sonhos possam ser os pesadelos dos outros não é para obviar no imediato. A história tem os seus ciclos. Um dia, daqui a alguns anos, a eutanásia será abolida e far-se-ão discursos sobre os negros tempos em que a morte de seres humanos indefesos e vulneráveis era normal e contemplada na lei. Os que hoje têm os seus nomes associados à regulamentação da morte já não serão vivos e nada lhes importará. Mas saberão, hoje, que os seus netos e bisnetos, que alguns e algumas não vão ter, esconderão os seus apelidos com vergonha.
Entre 2002 e 2023 o número de doentes eutanasiados na Bélgica subiu de 24 para 3423. Nos Países Baixos foram eutanasiadas 9068 pessoas em 2023, correspondendo a 5.4% de todas as mortes registadas nesse ano. Nos Países Baixos, ao longo de 10 anos, entre 2012 e 2021 foram eutanasiadas 60 mil pessoas. Segundo dados das autoridades holandesas, 927 dessas mortes foram determinadas em doentes com alterações cognitivas ou perturbações do espectro do autismo. Estas duas situações genéricas estariam presentes isoladamente em 21% das situações e eram factores contributivos importantes em outros 42% dos casos. Outras razões referidas para solicitar eutanásia eram o isolamento social e a solidão (77%), incapacidade para lidar com o sofrimento (56%), ou rigidez mental/ dificuldade de adaptação às mudanças (44%).
Outros países – Luxemburgo, Canadá, Colômbia, Nova Zelândia — e alguns estados norte americanos, legislaram a eutanásia nos anos seguintes. Em 2021, a Espanha aprovou uma lei da eutanásia que tornava acessível o procedimento a pessoas com doença grave e incurável. Foi, até ao momento, o último país a permitir eutanasiar e é o único que tem um passado cultural estável e consistente.
O upgrade que foi feito à legislação espanhola autorizou a morte de 180 pessoas no primeiro ano de vigência da lei, o que permitiu à ministra da saúde, a socialista Carolina Darias, esfuziantes comentários e palavras de incentivo dirigidos às regiões de Espanha que considerava mais atrasadas. Os 180 mortos por eutanásia desse ano permitiram realizar com os seus órgãos 68 transplantes – uma percentagem animadora de reciclagem a favor de doentes mais prometedores.
Para além dos números globais de doentes eutanasiados, fantásticos ou terríveis consoante o posicionamento perante a morte, tem merecido atenção a percentagem de pessoas com doença mental submetidas à morte por eutanásia. A evolução dos números nos Países Baixos é assustadora – ou magnífica, outra vez de acordo com a visão das coisas. Em 2010, registaram-se dois casos de eutanásia por doença mental, em 2023 foram mortos 138 doentes por problemas psiquiátricos considerados insuportáveis e inacessíveis a tratamento representando 1,5% das 9.068 mortes por eutanásia nesse ano.
O aumento brutal do número de mortes por eutanásia, assim como a inclusão progressiva de novas fatias sociais – doença mental limitada ao transtorno afectivo, crianças — tem motivado o receio da slippery slope, i.e., a deriva progressiva para eutanásias mais generosas e menos exigentes. Os números são um indicador importante desse risco, mas não o mais importante. É muito mais temível e incontrolável a tendência para a expansão das indicações ou utilidade de algo que é novidade. Essa é uma inevitabilidade, é intrínseca à existência de um recurso de novo. Destina-se a rentabilizar o seu uso e todo o tempo e meios gastos na sua implementação – acontece com as varinhas mágicas que já não são apenas para triturar a sopa, com os pavilhões multi-usos que não servem só para os jogos de futebol de cinco, e acontece com a eutanásia, que já deixou de ser exclusivamente para doentes terminais em situação de sofrimento considerado intratável e ao fim de um exigente percurso de certificação de vontade. A slippery slope não é uma maldade humana, é da natureza humana.
Tanatos, a personificação da morte, era filho da noite e da escuridão. A versão grega da morte viria a ser revista pelo cristianismo e modificada para incluir a luz, a luz que se associava à morte do filho de Deus, e a esperança, a que decorria da sua ascensão aos céus. O Tanatos que a eutanásia convoca ainda é o original, prático, sem niquices. Normalmente, apresenta-se com asas largas e negras que tudo abarcam.
Quando alguém reparar na crueza do nome e das suas conotações o nome será mudado. Existem exemplos felizes de como se pode mudar um nome sem mudar o que ele quer dizer, tão bem que é possível desse modo sossegar as consciências mais frágeis. Um dia a eutanásia chamar-se-á interrupção voluntária da vida.
É grande a dor dos que sofrem doenças terminais e, só por isso, tão dolorosas. É grande a dor da carne, do despegamento. É grande a dor dos que se vão separar dos seus filhos, do seu amor, dos que são obrigados, como Ruy Belo, ao que não queriam: Despeço-me da Terra da Alegria. E como deve ser doloroso inscreverem-se para morrer num dia determinado, abandonando a esperança de um milagre ou de um novo tratamento. Como deve ser desesperante não ter a certeza de uma aprovação, de percorrer toda a humilhação e duvidar de que ela sirva para algum coisa.
Como médico dispenso qualquer lei sobre a eutanásia. Nenhuma lei perceberá as infinitas subtilezas da morte e dos que ela procura. Para um doente é quase sempre a primeira vez. Para um médico nenhum desses momentos terríveis é igual a qualquer outro em que tenha estado. Só se repete a circunstância de uma cumplicidade desesperada dentro da qual, o médico e o doente, vão tentando perceber o que há a fazer.
Nota Final:
Enquanto todas estas coisas se passam e eu escrevo sobre elas, outras coisas de gravidade comparável acontecem. O país arde impunemente de norte a sul, morrem pessoas nos fogos, a Dra. Maria de Belém fala sobre o SNS; os 5 fugitivos de Alcoentre mantêm-se a salvo, estão hoje a ser presos homens que dirigem o destino do município da Calheta; numa escola, 6 crianças foram feridas por um colega munido de uma faca.
Sabe-se lá quem será preso amanhã, quem será atacado, ou quem virá falar aos portugueses.
As televisões mostram cenários que já não são dantescos, como eram em fogos anteriores, e especialistas peroram sobre os assuntos. Dão ânimo às pessoas. Apesar de Portugal ser o 4º país do mundo com maior desflorestação, atrás da Mauritânia, do Burkina Faso e da Namíbia, há quem note que Portugal tem floresta em excesso (“Temos excesso de floresta. Temos árvores a mais para a nossa capacidade de gestão”, não ficando claro se são árvores a mais ou gestão a menos), o que permite a conclusão de que estes fogos só podem estar a fazer bem. Que sítio é este, entre a Espanha e o mar?
A Europa mostra compadecimento e compreensão. Tem inundado Portugal com dinheiro em quantidades avassaladoras desde há 40 anos e o que vê já não lhe provoca indignação – nem sequer naqueles que se cansaram de abrir os cordões à bolsa e um dia manifestaram a sua escassa simpatia pelo vinho verde e pelas senhoras de vida fácil. A Europa ri-se saborosamente de Portugal. Olha para a degradação do ambiente político, para a bovinação imparável do povo, vê a destruição generalizada dos serviços públicos, para a mediocridade que não se enxerga… e faz contas a quanto lhe custará em breve injectar mais uns milhões no sustento da macaqueação lusitana, um pouco cara mas divertida.
A parábola do sinaleiro. Há anos havia na minha cidade, numa das principais praças e a de trânsito mais complicado, a Praça da Portagem, um sinaleiro que ordenava várias filas de trânsito em cima de um plinto. Era uma visão notável – o sinaleiro tinha um capacete e luvas brancas de cabedal, fazia gestos com graciosidade, o plinto era um tronco de cone com riscas verticais como os que os leões usam nos seus espectáculos. Por vezes, e apesar da graciosidade com que dava ordens, o trânsito ficava enrodilhado de uma maneira para a qual não se via solução. Mas havia. O sinaleiro descia do seu pedestal e abordava um dos carros parados, mantinha uma conversa sobre a necessidade de estar sempre atento ao que ele ordenava, perguntava pela família e se estava atrasado, se o carro era pessoal ou da empresa… tudo o que fosse necessário para que o tempo se escoasse. Quando voltava ao seu lugar o trânsito já se tinha desembrulhado sozinho.
Ah! Se todos percebessem a parábola do sinaleiro…!